sexta-feira, 22 de novembro de 2019






                                                              ALBERGUES


                    Quando caminhei em 2001, chegávamos em algum vilarejo, ou mesmo em uma cidade e procurávamos o albergue municipal. Não era obrigatório pagar, mas  havia uma caixa para donativos. E sempre havia vagas. É verdade que peguei camas altas do beliche, várias vezes, mas na época eu tinha 18 anos menos... Agora, a maioria dos albergues é paga e temos que telefonar todos os dias para fazer reserva. E às vezes já está tudo lotado. Se telefonamos com dois ou três dias de antecedência, conseguimos reservar camas baixas. Foi o que fizemos.
                   
                     Num dos vilarejos, o albergue tinha longos corredores, com quatro  pequenos quartos de madeira de cada lado. Cada quarto tinha dois beliches encostados nas paredes de madeira, com espaços mínimos entre eles, com pateleiras nos pés das camas, para acomodar as mochilas. era tudo de madeira e tão apertado, que nos sentimos estar dormindo dentro de um armário.

                     Já em outros albergues, era tudo muito bem planejado. Espaço suficiente para as mochilas, luz de cabeceira, prateleira para as coisas, cabides, camas altas com escadinha... com certeza quem planejou esses dormitórios já foi peregrino.

                    Num lugar, fomos muito mal recebidas por uma mulher sem nenhuma educação, que nos olhava feio, resmungava ou gritava conosco. Mas em compensação, subimos por uma escadaria de mármore, ficamos sozinhas num quarto enorme cheio de camas de casal, com banheiro privativo e ... um luxo: banho de banheira!

                   Em outros, o quarto era enorme, com mais de vinte beliches, uma confusão de mochilas, botas, sacolas e outros pertences empilhados  no chão e banheiro muito longe. Num desses, durante a noite, eu não achei o banheiro feminino, fui no dos homens. Pensei com meus botões. Se alguem reclamar, eu digo que sou trans. E fiquei durante o todo o tempo do pipi, pensando em como dizer isso em inglês. Achei essa desculpa tão boa, que usei muitos banheiros de homens daí pra frente. Mas não tive oportunidade de dizer "I am shemale", como me ensinou o Google Translator.

                  Um dia estava chovendo. Estávamos sonhando com um banho quente e uma cama fofinha. Mas nosso quarto ficava no fundo de um quintal. Era pequeno, abafado, mal iluminado, com seis beliches, nenhum cabide... nós nos acomodamos como pudemos e fomos tomar banho. Tivemos de sair na chuva novamente, andar pelo quintal até o banheiro. Dois banheiros enormes e um cartaz dizendo que eram destinados a cadeirantes. Animadas, abrimos as portas. A animação durou pouco. Apenas um dos recintos tinha um chuveiro. O outro tinha uma privada. Considerando o espaço que ocupavam, dava pra ter uns seis chuveiros e umas quatro privadas. Tomamos banho e depois saimos na chuva novamente até o quarto. Grrr...

                   No meio do caminho, entre uma cidade e outra, ficamos num albergue ecológico, onde tínhamos reservado tres camas baixas. Eu cheguei antes. Minhas amigas estavam uns quarenta minutos atrás. Entrei e fiquei horrorizada. Tudo sujo. Da recepção dava pra ver a pilha de louça suja na cozinha. Sala desarrumada, com brinquedos e roupas de crianças espalhadas pelo chão. Paredes de pedra e grandes vigas de madeira. Tudo tão rústico, que parecia agressivo. Teias de aranha nos cantos. Eu me senti dentro de uma caverna. Tinha jantar comunitário. Vegano. Eu não quis participar e disse que minhas amigas provavelmente não quereriam. Só queríamos o vinho. Jantamos pão com salame, numa mesa que estava no quintal. O vinho era bom.  Durante a noite, eu me levanto para o pipi. As camas são colocadas no enorme quarto, de maneira aleatória. Estava um breu. Meu celular, longe na tomada carregando. Eu me levanto e vou para o lado onde que acho que fica o banheiro... Só que não. Dou de cara com outra cama e depois com outra e mais outra... ando pra cá e pra lá, feito barata tonta... ai meu Deus, onde está o banheiro? Tenho que rebolar, o pipi está quase saindo... pânico ME... não, não fique panicada, voce vai encontrar, penso rebolando. Então, ví uma luzinha... uma moça estava acordada olhando o celular...               
                     - Can you please lend me your cell phone, so that I can go to the toilet? - ela responde em espanhol,
                     - Si... aqui esta! - ela acendeu a lanterna. Eu achei o caminho, fiz o pipi e na volta, agradeci muito!
                     - Muchas, muchas gracias! ... E me perdi novamente! Naquele breu, eu não conseguia achar a minha cama. A moça dando muita risada, me disse:
                     -Tu cama es esta! - e apontou.
                     - Não! Minha cama fica longe da sua! - falei português, será que ela entendeu?
                     - Es esta si, estoy segura! - a esssa altura, gargalhavamos as duas!
                      Não a vi no dia seguinte. Mas tenho certeza de que se lembrará de mim para sempre. Afinal não é qualquer um que consegue se perder dentro do quarto a caminho do banheiro...

                     Eu durmo na cama baixa. Em cima um homem pula que nem cabrito. A cama balança e eu não consigo dormir, então ligo o celular, ponho os fones de ouvido e começo a ver o facebook. O cara em cima de mim pula mais ainda. A certa altura, ele desce do beliche chega perto de mim e diz que não consegue dormir porque o meu celular está muito alto! Mas eu estou com os fones! Tenho vontade de responder que eu não consigo dormir porque ele se mexe demais e a cama toda treme...
Mas não digo. Não quero encrenca. Desligo o telefone. Ele sossega na cama. Dormimos ambos.

                      Mas na maioria das vezes, os albergues são bons. Os hospitaleiros são acolhedores, os jantares comunitários são deliciosos e o vinho maravilhoso. Os banheiros são um pouco difíceis... mas depois de decifrar o funcionamento das torneiras, das descargas e dos chuveiros, tomamos bons banhos, sempre revigorantes depois da caminhada.

                       Voce já pode dizer eu li na tela da
                                                                       Eulina
















segunda-feira, 11 de novembro de 2019







                                  ANDAR, COMER, BEBER, DORMIR E ANDAR DE NOVO


                    Eu me assusto com cidades quase desertas. Os poucos habitantes que encontramos são velhinhos. Não vemos crianças nem jovens. Peregrinos, muitos peregrinos. O caminho está muito diferente. Em 2001, quando fiz pela primeira vez, os peregrinos eram poucos e pelo que me lembro, as cidades eram mais habitadas pela população local.
                   Agora, as cidades, na sua maioria são habitadas pelos donos dos albergues e restaurantes. Ainda há alguns mercadinhos locais. Mas não há escolas, as casas estão todas com as janelas fechadas, e apesar de terem os jardins limpos e cuidados, não vemos ninguem. Às vezes, um varal com roupas de adultos.
                   Estou falando das pequenas cidades. Sempre tem uma igrejinha com um lindo campanário. E no alto dos campanário, um ninho de cegonha. Em 2001, havia muito mais ninhos de cegonhas. E mais crianças. As cegonhas de hoje estão desempregadas.

                                                                ***
                   Em Castrojeriz, só existe uma rua. Uma igreja bem grande no começo da rua e cinco igrejas menores situadas entre vários albergues e restaurantes. Quase no fim, um pequeno centro comercial, com um mercadinho de artigos peregrinos, com um casal de vendedores que deviam estar ali desde a idade média. Um boteco, com mesinhas cheias de peregrinos tomando cerveja e uma agência de correios com a seguinte placa: Horário de funcionamento: de segunda a sexta, das 11:00, às 11:15!  Se não fosse o caminho, essa cidade não existia!

                                                                  ***
                 Uma de minhas amigas tem problema nos joelhos e uma bolha com o diâmetro  do tamanho de uma bola de pingue pongue num dos calcanhares. Mal consegue andar. Fizemos um trecho de ônibus, ela descansou e melhorou. Dia seguinte, recomeçamos a caminhar. Ela vai devagar e nós paramos para esperá-la de temos em tempos. Fizemos assim todo o caminho. foi bom, porque não nos cansamos muito. Exceto a bolha e o joelho, não tivemos nenhum problema de saude em todo o caminho. Aliás, não tivemos nenhum problema.

                                                                     ***
                   Vou andando e me lembrando de Logroño. Ouvi este diálogo, no dormitório, quando fui contar quantas camas estavam ocupadas.
                  - Where are you from?
                  - Del pais Basco.
                  - Entonces eres español!
                  - No! Basco!
                  - Español!
                  - BASCO!
                  - OK Basco.
                                                                    ***
                   Agora, que sou peregrina, encontro com os peregrinos que acolhi. Me dão longos abraços.
                  - I was so down, but when I saw you, you smile at me, I became well again! It was so good!
                   E eu nem me lembro dela, muito menos do sorriso que dei, ou do que eu disse que lhe fez tanto bem!
                                                                 
                                                                     ***
                     - What is your name?
                     - Hermann.
                     - With this name... are you German?
                     - Of course! And you?
                     - I am brazilian!
                     - Seven x one!
                     Rimos ambos. Eu respondo:
                      - Herman, from German, all the world learned how to play football with the brazilians!
                      - Yes. It is true. But now, we are better!
                      Sou obrigada a concordar.
                   
                                                                        ***
                      Durante um jantar comunitário, encontrei  outro alemão contando, que esteve num albergue, onde cada peregrino devia cantar uma canção de seu país e ele ficou muito triste, porque os alemães não conheciam nenhuma música da Alemanha...
                      Eu com a cara de pau, que me é peculiar, cantei: lalalará, lalalará, lalala Lichtstein polka, Lichtstein polka...
                      Ele ficou olhando... eu disse: não é uma música alemã? Ele respondeu: sim... mas nós não cantamos...  e seus olhos ficaram tristemente pensativos.

                                                                         ***
                      Os banheiros são um capítulo à parte. Nunca se sabe onte fica o interruptor da luz, nem como se abre a porta, se para a esquerda, para a direita, se é de correr... tinha até porta com duas folhas. A luz normalmente fica no lugar mais escondido do ambiente. A descarga pode ser de apertar, de puxar cordinha, de abaixar alavanquinha, de puxar um botão. Teve um banheiro (numa parada hippie no meio do caminho) que era uma privada colocada em cima de um buraco enorme. As torneiras se abrem para a esquerda, para a direita, são de apertar, ou fotossensíveis, então ficamos fazendo gestos em frente às pias. Ah... e quando as luzes do teto são daquelas com timer, elas insistem em apagar no meio do número dois ou do banho... ou saimos nus/as dançando no meio do aposento, ou terminamos no escuro. Os boxes do chuveiro são minúsculos, e os chuveiros espirram água por todos os lados de tal forma que é comum a gente ficar se mexendo para receber os pingos d'água, esbarrar na torneira e de repente, a água ou pela ou gela.
                      Mas um bom banho depois de andar vinte km... não tem preço!

                                                                          ***
                      Voce já pode dizer eu li na tela da
                                                                     Eulina





               

sexta-feira, 1 de novembro de 2019





                                                      ENFIM, PEREGRINA


                    As minhas sucessoras no trabalho voluntário deveriam ser duas brasileiras,              segundo me informaram. No entanto, na véspera do término do meu período, no fim da
tarde, chegou uma canadense, bem branquinha, com pequenos e assustados olhinhos azuis, gorducha e ofegante. Ela se parecia fisicamente com a fada madrinha da Cinderela de Walt Disney e sofreu para subir as escadas, o que me fez ficar apreensiva quanto à sua capacidade para subir e descer, essas escadas inúmeras vezes, no dia a dia. Contei a ela tudo o que tinha aprendido no meu período e ela anotou tudo num caderninho. Parecia cheia de boa vontade e disse que estava aguardando sua companheira também canadense, no dia seguinte.
                  No dia seguinte, de manhã, após o café, durante o qual meu "chefe" e eu tentamos responder a todas a suas aflitas perguntas, ela disse:
                         - Onde eu devo deixar as louças do café para serem lavadas? - Ai meu Deus, ela não entendeu nada!   
                       - Você deve lavar a  sua louça e dar exemplo aos peregrinos para que cada um lave tudo o que sujou!
                           Tadinha! - Seus olhinhos até cresceram, de tanto que ela arregalou. 
                    Eu me despedi e fui embora com peninha dela. Fui de ônibus me encontrar com as amigas. No caminho até a rodoviária, fui me despedindo de Logronho. 
                          Missão cumprida!
                                                                          ***
                    Desci do ônibus em Burgos e assustei com o toque dos sinos da Catedral ao meio dia. bonito, mas ensurdecedor. Depois tomei um taxi a Hornillos del Camiño, onde iam pernoitar minhas amigas. Cheguei ao albergue, agora como peregrina. Cheguei cedo, consegui uma cama "baja", ou seja, a cama baixa do beliche. Minhas amigas chegaram mais tarde. Uma delas ficou na cama alta. Comemoramos com cerveja antes e com vinho durante a refeição. O menu do peregrino é sempre farto e regado a vinho.
                       "Com pan e viño se hace el camiño!"  É uma das muitas alegrias do caminho!

                                                                          ***
                   Manhã seguinte, mochilão nas costas, comecei a caminhar. A alegria de caminhar no meio da natureza é indescritível!
                      A sensação de liberdade, a cabeça solta! O privilégio de poder olhar as plantas, de ouvir os pássaros, de sentir os cheiros, de comer as frutas colhidas no pé... e de fazer voar os pensamentos! Que coisa boa!
                     Quando passamos por cidades grandes ou pequenos vilarejos é muito bom observar a arquitetura, o traçado das ruas, a maneira de se comportar do povo, suas tradições e sua história, usos e costumes. Percebemos que as pessoas, embora diferentes, são tão iguais...
                  As enormes planícies espanholas, onde o caminho é uma reta sem fim, e de onde podemos ver o horizonte em todas as direções... nos fazem pensar na eternidade! É fácil rezar, falar com Deus! Bendito caminho!
                Quando olho pra trás e vejo o horizonte, penso: - Eu vim de lá! - e olho pra frente, pro outro horizonte e penso: - Eu vou pra lá! - com meus próprios pés, eu me sinto toda poderosa, quase não caibo em mim, minha cabeça cresce, desprende-se do pescoço e vai parar nas núvens... além das núvens, não tem limites... maravilha! Vou repetir: Bendito caminho!

                                                                       ***

                   Você já pode dizer eu li na tela da 
                                                                     Eulina