segunda-feira, 9 de dezembro de 2019
SANTIAGO!
Enfim, chegamos!
A catedral lindíssima, com a fachada toda restaurada, muito mais fotogênica, serve de cenário para todas as "selfies" de todos os peregrinos e de todos os grupos, que ficam extasiados com a visão. A enorme praça, em frente à igreja fica repleta de gente se abraçando, desfraldando bandeiras de muitos países. Muita gente confraternizando! Uma de minhas amigas trouxe uma bandeira do Brasil, que eu segurei nas pontas e com os braços abertos, posei com meu melhor sorriso, para uma foto, com a catedral ao fundo e a bandeira na frente. Beleza!
Todos riem, choram, rezam, cantam dançam, externam emoções como podem... e se abraçam. É a terceira vez que chego a Santiago depois de um caminho percorrido. E sempre me recordo dessa praça, como o local no mundo onde dei e recebi os melhores abraços!
Nosso albergue fica perto. Descemos uma escada, depois uma ladeira e chegamos. Nosso quarto fica no quintal. É minúsculo e tem dois beliches e uma cadeira. Difícil de acomodar as coisas,
porém com lençois limpinhos e cheirosos. O banheiro fica longe, mas é grande e razoavelmente confortável. Ficamos bem acomodadas. Minhas amigas vão até Finisterre. Eu já fui lá duas vezes. Em 2001, pela primeira vez e em 2017, quando fiz o Caminho Português. Desta vez, vou ficar em Santiago.
A cidade fervilha! Milhares de lojinhas, com infinitas lembrancinhas... o que será que São Tiago acha disso? Tento não me render ao consumismo. Não consigo, me deixo vencer pela tentação de dar presentinhos. Pra mim, não compro nada. Ando pela cidade. No dia em que as amigas foram à Finisterre, eu fui passear de bondinho pela cidade. É grande, bonita e bem resolvida, tem muitos monumentos, museus, parques, tudo muito bem conservado. Converseri com alguns moradores e todos disseram gostar muito de viver ali, mas que no inverno, quando há menos turistas e peregrinos, eles gostam mais.
A catedral está sendo reformada por dentro. Então as celebrações estão suspensas. É uma pena. A missa dos peregrinos está sendo rezada todos os dias, ao meio dia, na igreja de São Francisco, que fica perto. Mas sem o botafumeiro.
É interessante, porque das outras vezes que estive em Santiago, os peregrinos (eu inclusive) sempre choram emocionados quando o botafumeiro é acionado. Reza a lenda que a função do botafumeiro era disfarçar o cheiro ruim dos peregrinos que chegavam e iam diretamente para a missa. Atualmente, simboliza a limpeza que o peregrino faz na alma, quando percorre o caminho. E é nessa hora que a choradeira é geral. Realmente, ver aquele enorme objeto fumegante, "voar" por toda a igreja, acionado por oito padres ao som dos cânticos gregorianos, é emocionante. Que bom que eu já vi essa cena algumas vezes.
Desta vez, eu fui à missa na igreja de São Francisco e agradeci pela jornada ao som dos cânticos, mas sem botafumeiro.
Em 2001, quando caminhei pela primeira vez, senti muito mais a sensação de misticismo e magia comumente associadas ao caminho. Não havia celulares, não se pagava nada nos albergues e o menu do peregrino era muito mais barato. Não existiam ônibus cheios de "turisgrinos" e só não carregavam seus mochilões as pessoas realmente impossibilitados. Pisávamos no chão, na maior parte do tempo. O caminho nos fazia lembrar da idade média.
O número de cidades desabitadas, ou que são habitadas só por donos de albergues, de comércio, bares, restaurantes exclusivamente para peregrinos era muito menor. Havia mais roupas nos varais das pequenas cidades. Os moradores vinham conversar com os peregrinos e oferecer água, às vezes uma fruta e pedir que rezássemos por eles em Santiago.
Agora, esse misticismo, essa magia não são assim tão evidentes. Nem a cordialidade dos moradores. O caminho é mais atlético e turístico. E mais confortável. Mas continua muito interessante.
Atualmente, os vários caminhos podem ser trilhados no todo ou em parte, a pé ou de bicicleta, por muito mais gente, de todas as idades. Aumentou muito o número de caminhantes da terceira idade, ou com qualquer tipo de dificuldade de locomoção. Isso é ótimo. E todos tem direito à Compostelana. Os caminhos se democratizaram.
Se alguem, como eu quiser meditar, rezar, sonhar, pensar na vida enquanto caminha, terá muitas oportunidades. Se for atleta e quiser praticar "trekking" medindo tempos e kilômetros, também terá oportunidades. Se quiser faser um tour histórico e arquitetônico, passando por lugares com muitas belas construções, monumentos e obras de arte, também será possível. E o caminhante poderá ainda experimentar a excelente gastronomia da Espanha, bebendo os melhores vinhos. Tudo isso enquanto exercita a própria capacidade de resiliência e conhece pessoas de todo o mundo.
Enfim, vale a pena fazer o(s) Caminho(s) de Santiago!
Voce já pode dizer eu li na tela da
Eulina
sexta-feira, 6 de dezembro de 2019
OS ÚLTIMOS 100 KILÔMETROS
Para ganhar a Compostelana (diploma de peregrino do Caminho de Santiago) é preciso percorrer a pé, a cavalo ou de bicicleta os últimos cem kilômetros. E a cidade de Sarria, que fica a aproximadamente cem km, é a confluência de quase todos os caminhos que vão a Santiago, partindo de diversos pontos da Espanha. Então, a partir daí o caminho se torna muito mais movimentado. Muitos peregrinos que vieram de muitos caminhos se encontram. E além disso há muitos peregrinos que só vão fazer cem kilômetros mesmo. Os novos albergues e os antigos também, estão sempre lotados. É preciso reservar com antecedência.
Atualmente existem ônibus que despejam hordas de "turisgrinos" no caminho. É possível reconhecê-los pelas roupas limpinhas e pela mochila pequena, as grandes ficam nos ônibus. Nem todos usam botas, andam de tênis ou até de "Kroc". Quando chegam em algum restaurante, sempre tem uma mesa grande reservada. São olhados com um certo desprezo pelos peregrinos caminhantes. Encontrei vários grupos desses. Muitos coreanos, espanhóis e alguns franceses. Esses grupos não se misturam. Não interagem, ficam só entre êles. Andam parte de ônibus e parte a pé os cem kilômetros e, quando chegam a Santiago, ganham a Compostelana.
Felizmente, a maioria dos peregrinos caminhantes oriundos do caminho francês tradicional ou de outros pela Espanha é sempre aberta a novos e internacionais relacionamentos. A língua mais falada é o inglês, mas o Google Translator funciona muito. E mímica também. Mímica é o que mais funciona. Conseguimos dar e obter informações de todos os tipos e para peregrinos de todas as nacionalidades, falando uma mistureba de línguas e mímicas. Enfim, vale tudo. Tudo e todos juntos e misturados. É a maior lição que o caminho nos dá. Afinal, apesar de diferentes, somos todos iguais. Essa é a grande contribuição do caminho para a paz mundial.
Os últimos trechos são superpovoados. Não temos mais a sensação de isolamento, paz e tranquilidade que tínhamos anteriormente. Ás vezes, em trilhas estreitas, formam-se filas de peregrinos. Eu não gosto muito, mas não tem jeito. É assim e pronto. Mas mesmo assim, prevalecem a alegria e a ansiedade de chegar!
Percebemos também que quanto mais perto de Santiago, mais a população das cidades fica mal humorada com peregrinos. Devem estar de saco cheio. Eu me lembro, em 2001, todos estavam muito agradacidos ao Paulo Coelho que havia praticamente redescoberto o caminho em seu livro "O Diario de um Mago" dando, à época, um grande impulso à economia do turismo na Espanha. Éramos sempre muito bem recebidos. Agora, essa fase acabou e eles estão "de saco na lua" com essa multidão de peregrinos.
Tem gente que fica triste quando o caminho está acabando. Habituam-se com a rotina de andar. comer dormir e andar de novo. Fizeram amigos, que sentem ter de deixar. Gostaram do silêncio dos campos, montanhas e florestas. Meditaram, energizaram, rezaram, exercitaram a solidão e o auto conhecimento, tudo conforme suas crenças... abandonaram algumas crenças e adquiriram novas. Enfim, se tornaram outras pessoas... sentem saudade do caminho, antecipadamente. Esses começam a andar mais devagar, querem demorar a chegar.
Outros estão ansiosos por retomar suas vidas normais, reencontrar a familia, amigos, trabalho... Estão cheios de histórias e aventuras para contar. Querem o conforto de suas casas, suas camas, suas rotinas diárias... é a maioria. Esses passam a andar mais depressa, querem chegar logo. Minhas amigas e eu pertencemos à essa categoria.
Em comum, todos estão felizes e bem humorados. E além de terem exercitado suas paciências e capacidade de resiliência, setem o orgulho de um dever cumprido, uma etapa vencida.
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Voce já pode dizer eu li na tela da
Eulina
terça-feira, 3 de dezembro de 2019
ANCESTRAIS
A Galicia é quase toda plana. E foi quase toda pavimentada. Não tem grandes subidas e descidas e nem atoleiros. O cheiro de bosta permanece, é o mesmo que senti em 2001. Mas eu gosto. Eu sentia esse cheiro na fazenda do meu tio, onde passei todas as férias escolares. A paisagem é linda. Podemos caminhar tranquilamente, sem precisar prestar atenção no chão.
Eu caminho olhando as árvores, o gado pastando, as construções de pedra resquícios da civilização celta, ouvindo o canto diferente das aves, e me lembro de Gonçalves Dias:
"Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá. As aves que aqui gorgeiam, não gorgeiam como lá."
A cabeça pode voar à vontade, enquanto ando. Eu adoro isso, sigo feliz nesta terra sem palmeiras.
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Tenho encontrado peregrinos que acolhi em Logroño. É muito bom. Eles se lembram de mim, me abraçam apertado. Agora que estamos quase no fim do caminho, todos já se encontraram em algum ponto. Todos se cumprimentam, trocam impressões sobre a caminhada do dia anterior, os planos para o próximo trecho, comentam o último albergue. Consultam mapas, roteiros, Google, GPS. Sempre que chegam ficam discutindo o percurso. Minhas amigas fazem isso. Eu apenas concordo com tudo. Minha missão é falar pelo celular com os hospitaleiros dos albergues, dos dias seguintes:
- Jo quiero reservar tres camas bajas para tres senõras de edad!
Um dia, precisamos telefonar para vários albergues até conseguir a reserva e um peregrino sentado ao nosso lado começou a rir:
- Há...há...há... tres camas bajas... há... há... há...
Dias depois, nós nos encontramos com ele novamente em outro albergue e êle nos cumprimentou rindo... - Olá tres camas bajas!
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É interessante ver como as pessoas se resolvem, como lavam as roupas, escovam os dentes, penduram ou inventam meios de pendurar as roupas na hora do banho... ou de empilhar suas coisas ao lado da cama... alguns fazem uma cortininha na cama de baixo do beliche, enroscando um pano qualquer no estrado da cama de cima. Querem privacidade.
Outros usam o estrado da cama de cima como varal. Vemos cuecas, calcinhas, meias soutiens, tudo sacolejando a cada mexida do ocupante da cama de cima. É engraçado observar um dormitório! Tive muita sorte, pois em vinte dias de caminhada, dorminndo em quartos coletivos, não precisei usar os tampões de ouvido nenhuma vez. Não encontrei roncadores neste caminho.
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Dormimos em Palas Del Rey. Simpática cidade onde a maior atração turística é o castelo de Pambre, que fica a vinte kilômetros, no povoado de Ulloa, ao lado do rio Pambre. Aqui cabe uma pequena explicação:
Meu sobrenome, por parte de pai é Ulhôa Cintra e rezam as lendas da minha familia, que na era dos reis Felipes da Espanha, alguem de Ulloa se casou com alguem de Cintra de Portugal, (que na época se escrevia com "C"), dando origem à familia Ulloa Cintra.
Quando Napoleão invadiu Portugal, a familia então residente em Lisboa, fugiu para o Brasil, junto com a côrte de Dom João VI. Aqui, os dois "ll" de Ulloa se transformaram em "lh" e Cintra permaneceu com "C" enquanto em Portugal mudou para "S".
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Então, pegamos um taxi e fomos visitar o castelo de meus "ancestrais". Todo de pedra! Com uma torre alta, digna da Rapunzel! Lindo! Cercado de grandes muros, ladeados por um fosso enorme, tudo no melhor estilo da idade média. O portão de entrada traz alo alto o brazão da família e funciona com carretilhas que quando acionadas fazem abaixar a madeira formando uma ponte sobre o fosso.
O Castelo foi construido por Don Henrique Ulloa, no ponto mais alto de um campo enorme, para servir de fortaleza, contra os ataques dos mouros. A vista do castelo é monumental e a vista do alto da torre é espetacular! Todo restaurado, um luxo! É a mais perfeita construção medieval de toda a Espanha, como explicou o zelador/curador, que já morou no Brasil. Quando eu contei sobre a lenda de minha família, êle se levantou, apontou com o braço a porta de entrada e disse, em bom português:
- Então, sinta-se em casa! - e eu me sentí importantíssima, visitando o "meu" castelo!
Para mim, esse foi o momento mais emocionante do caminho.
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Voce já pode dizer eu li na tela da
Eulina
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