quarta-feira, 29 de outubro de 2025

 

                                                                               PANICO

                                                                                                                                            

     Engraçado, não consigo me lembrar de quem me indicou esta clínica. Mas, acho que fiz bem em aceitar a indicação.

     Aqui é tudo tão lindo, tão organizado, relaxante, luzes suaves, cores em tons pastéis, tudo perfeito para combater o stress, aliviar as tensões...  As pessoas são todas muito simpáticas, agradáveis, acolhedoras.  E os sorrisos! Parecem grudados nas caras das pessoas! Será que elas nunca param de sorrir? Nunca ficam tristes? Ou sérias? Ou bravas? Ah! De vez em quando, sai um “arranca rabo” e, algumas vezes o “rabo arrancado” é o meu! Mas, não me queixo, é merecido. Eu apronto e pago por isso.

     Pensando bem, este lugar é meio esquisito. Não sei se vou conseguir ficar aqui por muito tempo. Logo que cheguei, achei ótimo, calmo, relaxante, perfeito para renovar as forças. E eu estava mesmo muito precisada. Foi um bálsamo, depois do apagão que tive. Realmente, eu não poderia continuar naquele ritmo alucinado.

     Porém, um lugar assim, onde tudo é certinho, chega a “me dar nos nervos”! Acho que é uma questão de temperamento. Na verdade, não nasci para ser tão calminha desse jeito. Não sei conviver com este tédio.

     Da última vez que me senti assim, fui falar com os chefes. Recebi longas explicações, nas quais só prestei atenção até a metade... depois a minha cabeça não conseguiu mais acompanhar e eu comecei a divagar sonhando com muitas cores vivas...

     De uns tempos pra cá, comecei a ter saudade do agito, desejando ter novamente os hormônios no comando das minhas emoções.  Agora, tenho saudade até dos sofrimentos! Pensando bem, acho que não preciso mais ficar aqui.

     Vou procurar os chefes, dizer que já estou revigorada, pronta para enfrentar o stress, a correria, o trânsito, as sonhadas cores vivas. Tudo de novo! Mal posso esperar! Não preciso aguardar alta médica. Já me sinto curada. Posso sair hoje mesmo. Quero retomar o meu trabalho, na Secretaria Municipal da Habitação.

                                                                    ***

     Centro da Capital de São Paulo, Edifício Martinelli, Secretaria Municipal da Habitação. Preciso falar com o Sr.  Secretário. Passo pela portaria, me identifico e chego a um longo corredor com o piso de mármore quadriculado em preto e branco. À direita, os elevadores. Muitos elevadores. Alguns expressos, vão direto para os gabinetes das autoridades e respectivas assessorias. Outros, vão para os andares pares e os restantes, para os ímpares. A maioria tem filas diante das portas. Os expressos, não.

          Como vou falar com o Secretário, paro na frente de uma porta sem fila. A espera é breve. O elevador está apenas a um andar abaixo. Logo ele chega, a porta se abre e eu entro.

          Vejo uma mulher. Cabeça baixa, ela está concentrada lendo um papel. Um metro e sessenta e tantos, magra. Eu reparo sua roupa: saia justa preta, blusa estampada com cores discretas, blazer. Constato que ela tem bom gosto. Eu vestiria todas essas roupas, com prazer. Olho os sapatos: saltinhos confortáveis, porém elegantes. Eu tenho sapatos assim. Bolsa grande, de couro, dessas que servem para carregar todos os apetrechos femininos e ainda documentos, um guarda-chuva, (daqueles dobráveis) e talvez um lanchinho. Usei muito bolsas assim.

          Mas eu me concentro na mulher. Ela está tão atenta à leitura de um papel, que nem me nota. O que estará escrito nesse papel? Eu permaneço parada a sua frente, enquanto o elevador sobe. Este é dos expressos. Então é uma longa subida, pois o gabinete do Secretário e suas assessorias ficam no vigésimo quarto andar.

          Continuo observando a mulher. Será que, como eu, ela tem alguma pendência a resolver? A pendência deve estar escrita nesse papel. Estou cada vez mais intrigada... ela tem alguma coisa... que me toca profundamente! Fico desejando que ela levante a cabeça, quero ver seu rosto. Vejo seus cabelos. São castanhos e estão arrumados num coque no topo da cabeça. Quando eu era mais moça, eu penteava os cabelos assim. Estamos quase chegando.

          Chegamos. O elevador para, vai abrir a porta. Ela levanta a cabeça. Eu finalmente, vejo sua cara! Meu Deus! É a minha cara! Fico parada, petrificada, de boca aberta, olhando para ela... mas ela nem me vê! Que horror! Eu me sinto ínfima, uma titica transparente, invisível, um nada...

        Ela vai sair do elevador, olha para o corredor, verifica se está no andar certo. Eu permaneço estática, paralisada, em estado de choque. Fico tão abobalhada, que não saio da sua frente. Estou bem no caminho e ele não desvia. Vai esbarrar em mim! Eu finalmente me dou conta de que estou impedindo a sua passagem e tento me mover. Em vão. Fico imóvel. É tudo muito rápido, ela se aproxima e ... me atravessa! Eu sou ínfima transparente, invisível e atravessável!

          Ela tem as minhas roupas, meus sapatos, meu penteado, minha cara... Ela sou eu!

          Pânico!

.                                                                ***

     Pronto. Olha eu aqui de novo! Tive um novo apagão. Nem deu tempo de contar aos meus amigos que eu não preciso mais ficar neste lugar! 

     Agora, tento explicar porque não quero mais ficar aqui, mas não consigo me fazer entender. Toda vez que digo isso, êles sorriem mais ainda e acho que me aplicam alguma injeção com calmantes, porque eu apago de novo e acordo aqui outra vez!

     Ai que saco, o que devo fazer para sair daqui? Já tentei gritar, espernear, falei todos os palavrões que conheço, já tentei explicar calmamente, usando palavras bonitas, tive paciência, não tive paciência... nada deu certo.

     Já sei. Vou fugir. Vou prestar atenção aos horários das atividades e achar uma brecha, ou melhor, achar um momento no qual todos estejam muito ocupados com suas tarefas, seus afazeres e conseguir sair caminhando calmamente, como se eu também fosse para algum lugar, desempenhar alguma tarefa que me tivesse sido atribuida.

     Estou indo. Fui.

                                                             ***

     Secretaria Municipal da Habitação. Edificio Martinelli.

     Eu acabo de sair do elevador. Vou falar com o Sr. Secretário da Habitaçâo. Preciso apresentar a êle o abaixo assinado da porpulação da favela Paraisópolis, contendo propostas de atuaçâo e requerendo a construção de HIS (habitações de interesse social) para resolver definitivamente o problema das famílias moradoras em áreas de risco. São oitenta e sete famílias. Estou esperançosa. Acho que, desta vez, o Secretário irá atender.

     Mas logo agora, na saída do elevador, tive uma sensação estranha. Foi uma espécie de parada cardíaca? Ou uma queda de pressão? Um quase desmaio? Sei lá... parece que fui atingida por alguma coisa invisível que me causou um súbito mal estar. Ainda bem que passou logo. Não quero que nada pertube a minha reuniâo com o Secretário.

     Afinal, pretendo resolver de uma vez por todas esta questão. Fas tanto tempo que trabalho com isso! Foram tantas reuniões, assembléias, com suas respectivas atas, redação de várias propostas, horas e horas tentando compatibilizar as necessidades dos moradores com as disponibilidades financeiras e operacionais do poder público, até chegar a este documento, que eu não suportaria mais uma negação. Seria intolerável decepcionar o povo mais uma vez.

      Preciso atender essa população, nem que seja a última coisa que eu faça na vida!

                                                              ***


 

 

 

 

 

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