FRAULEIN INGRID
Pego o trem em Berlim. Vou para Basel. São muitas horas de viagem, atravessando o sul da Alemanha, dentro de uma cabine, de onde vejo a paisagem voando pela janela. Estou sozinha na cabine. Tomara que seja assim durante toda a viagem. Não é. Agora, acabou de sentar-se na minha frente, uma senhora.
Setenta anos, pouco mais, pouco menos, cabelos grisalhos, presos num pequeno e bem comportado coque, roupa escura, surrada e limpinha, com gola e punhos enfeitados com rendinhas brancas, sapatos de salto grosso e pernas surpreendentemente belas, cobertas por meias transparentes de nailon cinzento. Olhos azuis desbotados e bondosos. Ar de dignidade. Quando seus olhos encontram os meus, sua boca de lábios fininhos ensaia um pequeno sorriso.
Nesse instante, a partir o sorriso, ela nasceu.
Nasceu durante a guerra, numa pequena cidade alemã, dessas que foram destruidas e depois reconstruidas. Foi criança durante a guerra, assustou-se com o barulho das bombas e passou horas escondida num porão, agrarrada às roupas da mãe. Cresceu durante a reconstrução, escondendo-se nos escombros para fugir dos soldados ocupados em roubar tudo o que conseguiam. Depois, já grandinha, com doze anos, trabalhou como ajudante de pedreiro. Nessa época, ela desfazia a barra das saias numa tentativa de esconder as pernas, que tanto atraíam os olhares de seus companheiros de trabalho. Por causa disso, tornou-se arisca, estava sempre fugindo, sempre se escondendo. Não encarava as pessoas, vivia com medo. Adolesceu assim.
Cresceu. Aos 18 anos, ela é comprida, magrela, desengonçada, cabelos difíceis, olhos desbotados que mal conseguiam sustentar um olhar, lábios finos, sorrisos raros. Mas suas pernas são belas. E cobiçadas. Depois de um namorico frustrado, durante o qual, com muito custo conseguiu manter-se intocada, ela decide ir embora. Com o coração fechado e os olhos se desfazendo em lágrimas, foi para Berlim.
O trem passa por muitas cidadezinhas. Ela olha atenta para todas elas. Testa franzida, pensamentos profundos. Está se lembrando da guerra e do pós guerra.
Eu tenho um sanduiche. Desembrulho e ofereço. Ela dá uma piscadela azul desbotada e também me oferece um sanduiche, que eu não quero, mas ela insiste, faz com as mãos, um gesto de apertar, enrolar uma massa e bate no peito. Entendo que ela fez o pão. Aceito um pedaço, só para alegrá-la. É delicioso, ela cozinha bem!
Descubro então que seu primeiro emprego em Berlim, foi de cozinheira num pequeno restaurante de bairro. Suas massas, suas carnes, seus doces foram ficando famosos, contribuindo para aumentar muito a freguesia do restaurante. Neste momento, eu a vejo assustada e defensiva, se esquivando por entre a cozinha e os balcões do restaurante, correndo em direção às mesas e aos fregueses, onde ela sabe que o patrão não vai importuná-la. O patrão é casado com uma mulher brava. Todos os dias a fraulein espera ansiosamente por sua chegada, porque na presença dela, o patrão se comporta dignamente, fingindo ser um homem de bem.
Agora, entra um homem na cabine. Imediatamente, ele olha para as pernas da fraulein. Ela percebe o olhar e faz cara de quem não quer conversa.
Então, eu a surpreendo pedindo demissão do restaurante, o que resulta numa discussão acalorada, pois o patrão não quer deixar de vender seus quitutes e muito menos desistir de suas pernas... Mas ela conseguiu. Já tem algumas economias e está decidida a trabalhar num lugar onde suas pernas não sejam tão importantes.
O passageiro sentado ao nosso lado, desce nesta parada. E em seu lugar, entra uma senhora com duas crianças pequenas. Desta vez, os olhos da fraulein se enchem de ternura e ela, toda prestativa, ajuda a mãe a acomodar a bagagem e a sossegar as crianças.
Ela cochila na minha frente, sua cabeça encosta na parede, sua face se descontrai um pouco, mas permanece alerta. Percebo que tem prática de dormir assim. Noites de vigília ao pé de uma cama.
Imediatamente, eu a vejo sendo contratada. Depois de longa busca, achou o emprego ideal. Uma familia respeitável, marido, esposa, três crianças e uma avó. Casa grande, jardim, quintal, boas acomodações para empregados. Começa como cozinheira, depois passa a regar as plantas, depois das arrumações e por fim passa a cuidar das crianças e da avó. A fraulein se torna governanta do lar., responsável inclusive pela frequencia das crianças à escola, pelos deveres escolares, pelas comemorações de aniversários, quando seus doces e bolos fazem muito sucesso e até pelo horário dos remédios, pelos copos d'agua, ou pelos chazinhos e sopinhas, quando alguem adoecia.
Olho suas mãos. Elas merecem uma menção especial. São mãos que sovam massas, que fazem bolos, que limpam narizes de crianças, amparam velhinhos, tratam de doentes, mãos que pegam no pesado, lavam e passam roupas finas, alisam lençois branquinhos, regam plantinhas... lindas mãos!
A mãe e as crianças descem do trem. Ficamos sós novamente. Resolvo me apresentar, escrevo meu nome em um papel e entrgo a ela. Ela sorri, pega a minha caneta e escreve no mesmo papel: Ingrid. Eu sorrio de volta e escrevo Brasil em baixo do meu nome. Ela me olha interrogativamente. Eu pego minha agenda e abro numa página que tem o "mapa mundi". Aponto o Brasil e seus olhos denunciam o entendimento. Em seguida, ela escreve um nome impronunciável em baixo do nome dela. É a sua cidade, sua terra natal. Ela está com a mão no coração.
Eu retomo sua vida. Fraulein Ingrid trabalha com essa familia durante muitos anos. A Alemanha se reconstruiu, a avó morreu, as crianças cresceram e os pais ficaram velhos. A casa ficou grande demais, foi vendida. Ingrid se aposentou. Colocou suas poucas coisas numa mala e numa sacolinha e suas muitas lembranças no coração. Agora está, sentada, toda ansiosa, rumo à sua aldeia natal. Continua virgem, apesar de suas pernas que ainda são belas.
De repente, ela me chama, aponta para a janela, toda agitada, olhos brilhando, mãos no coração! Olha para mim, Olha para a janela várias vezes, respiração ofegante, sorriso radiante, sua mão fria pega a minha mão e aperta! Eu também aperto a mão dela! Seus olhos estão cheios de lágrimas, até deixam de ser desbotados, se tornam brilhantes, as lágrimas escorrem... as dela e as minhas! Ficamos assim, lacrimejantes, de mãos dadas, olhando a aldeia pela janela.
Vejo casinhas com quintais cheios de árvores e a torre branca de uma igrejinha. O trem apita e começa a andar cada vez mais devagar. Eu tenho um brochinho com a bandeira do Brasil. Entrego a ela e ganho seu melhor sorriso! Ela me abraça e pega a mala e a sacola. Prende o brochinho na gola de rendinhas e desce do trem. Fico olhando. Estação deserta. Ninguem à sua espera. Ela olha para mim. Dou adeus com a mão e ela também.
O trem se afasta e eu continuo olhando. Ela fica parada na estação vazia. Olha em volta, acena para mim uma última vez. Depois se vira e sai andando firme, com suas belas pernas. Não olha para trás.
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