O MENINO
Estou pedalando minha bicicleta nova, na rua Tucuman, em direção ao rio Pinheiros. Eu curto o vento na cara, o ritmo das pernas, o friozinho na barriga cada vez que passo por um buraco no chão de terra. Conheço todos os buracos, sei exatamente quais eu posso atravessar e de quais eu devo desviar. E sempre prefiro andar na parte da rua que não é asfaltada, porque é mais divertida.
Sigo assim, alternando a atenção entre o chão e seus buracos, e as casas e terrenos baldios da rua. Conheço todas as casas e cumprimento alguns de seus moradores. Afinal, são todos vizinhos é natural que se conheçam e se cumprimentem.
Chego ao fim da rua. Estou na várzea do rio Pinheiros. Na várzea não dá para andar de bicicleta. Está sempre semi alagada, cheia de lama ou de areia. Eu gosto deste lugar. Gosto de olhar o rio, de ver as curvas que ele faz. Aqui é tudo quieto e sossegado, dá pa ouvir o barulho da água correndo. E de vez em quando, passa o trem que vai pra Santos. Eu adoro ver o trem passar.
Acho uma pedra, deixo a bicicleta do lado e me sento. Daqui a pouco o sol vai se por e eu quero ver. Hoje foi um dia lindo e acho que o por do sol vai ser lindo também. Fico quietinha, achando a vida boa.
De repente, vindo não sei de onde, aparece um menino. Deve ter a minha idade. Nem feio nem bonito, nem gordo nem magro, nem bem nem mal vestido. Um menino, apenas um menino. Mas com um sorriso malandro. Ele me olha intensamente, parece que está me avaliando, formando uma opinião sobre a minha pessoa. Eu me sinto um pouco constrangida, fico sem jeito, tenho até uma pontinha de medo... mas, penso:
- É só um menino... não vai me fazer mal... mas parece ser bem abusado. - e, para a minha surpresa, ele fala comigo:
- Olá menina! Você está pensando em mim?
- E por que deveria estar pensando em você? - respondo, bem malcriada, ele é abusado mesmo.
Estou ficando irritada com ele. Ele sorri um sorriso matreiro, um sorriso de quem sabe segredos. E, para aumentar minha irritação, eu percebo que ele está adorando despertar a minha curiosidade.
- Porque eu sei tudo o que vai acontecer com você e com este lugar. - ele diz isso com cara de quem gosta de cada palavra, como se elas fossem feitas de doce de côco. Quase lambe os beiços!
- Que menino metido! - penso - Ele acha que sabe da minha vida! Minha mãe sempre me diz pra não falar com estranhos, mas... esse menino precisa de uma lição! Vou desafiá-lo.
- Sabe, é? Pois então me diz, me conta tudo! - quero ver ele se atrapalhar com a resposta.
- Voce quer saber o que vai acontecer com você, ou com o lugar?
- Tudo! Comigo e com o lugar! - falo, bem brava.
- Tá legal. Primeiro você. Voce vai crescer, estudar, se formar advogada, vai casar, ter três filhas, vai se separar, morar com sua mãe, não vai enriquecer apesar de trabalhar muito, mas vai viajar pelo mundo. Depois que se aposentar, vai ser escritora.
- Hum... Não! Não vai ser assim! Não quero ter três filhas. Quero um casal. E quero ser rica.
- Não adianta você querer ou não. Você não vai ser rica e vai ter três filhas. Eu tenho certeza.
- Hum... como pode ter certeza? Eu não acredito em nada disso! - que coisa, ele acha que sabe tudo!
O menino deu de ombros, sorrindo sempre. Eu continuo cada vez mais brava, sentindo que não consigo intimidá-lo e pergunto:
- E com este lugar, o que vai acontecer? - desta vez, ele vai se enrolar!
- A rua Tucuman vai perder o "n" e ganhar um "ã", vai ser inteira asfaltada. Aqui onde estamos, vai passar uma avenida margeando o rio. E o rio vai ser retificado, não vai mais ter curvas. Nem várzeas.
- E o clube? - não é possivel, ele tem resposta pra tudo!
- O clube vai ficar no mesmo lugar, mas vai ter muito mais construções, mais modalidades de esportes e muito mais sócios. Você não vai conhecer todo mundo, como conhece hoje. Aliás, voce não vai conhecer todo mundo da rua também, porque a rua vai ficar cheia de prédios. Todas as casas vão ser demolidas.
- Hum... eu não acredito em nada disso! Meu pai disse que vai construir um predinho de três andares no quintal da minha casa e que eu e minhas irmãs vamos nos casar e morar lá!
- Não tem a menor importância.
- Como não? O quê não tem importância? - não suporto a idéia ele de contrariar o desejo do meu pai!
- Você acreditar ou não. As coisas vão acontecer do mesmo jeito.
- E no começo da rua, o que vai acontecer? - pergunto em tom provocativo.
- A rua Iguatemi vai ser destruida deste lado. Vai ser alargada e vai sumir. No lugar vai existir uma avenida, que vai se chamar Faria Lima.
- Hum... continuo não acreditando! - ele não se rende!
- Mas devia acreditar, porque tudo isso vai acontecer mesmo, quer você queira ou não. - ele diz isso com um ar vitorioso, que me deixa furiosa.
- Como é que você sabe? - é agora que ele se enrola... não vai poder explicar! Mas o menino não se atrapalha...
- Voce quer saber o meu nome?
- Quero!
- Eu me chamo Futuro!
Disse isso e foi embora, pelo mesmo lugar de onde veio.
***
- E como é que você sabe tudo isso? - acho que agora, ele vai ficar sem resposta.