sábado, 31 de agosto de 2019
O ESPÍRITO PEREGRINO
A primeira vez que fiz o caminho de Santiago foi em 2001. O caminho havia se tornado conhecido recentemente, por causa do livro do Paulo Coelho. Mas ainda não era muito conhecido turisticamente. Ainda havia muito espírito peregrino.
O espírito peregrino consiste em superar o cansaço, as dores, as bolhas, enfim todos os perrengues e dificuldades que forem encontradas durante dias de caminhadas. É uma alegoria. A vida é cheia de obatáculos e superá-los nos torna melhores. E tal como no caminho, os obstáculos devem ser superados pacientemente um a um, na medida em que surgem. Isso nos faz pessoas melhores e o caminho nos ensina a sermos pessoas melhores. Conhecer outros peregrinos é a melhor parte. É quando podemos exercitar nossa solidariedade, nossa capacidade de amar ao próximo como a nós mesmos, como Cristo ensinou.
Lembro-me de passar pôs pequenas cidades e o povo local vir nos oferecer comida, água, sombra para descansar... Os albergues não cobravam nada pelo pouso, havia em alguns, a seguinte placa, em cima de uma cesta destinada a donativos: Contribua com o que quiseres ou retire o que necessitares. E havia não só dinheiro, mas muitos pertences deixados pelos peregrinos, como xampus, sabonetes, casacos, remédios, roupas em geral, até botas! E funcionava assim. Fazia parte do espírito peregrino.
Mas o tempo passou e as coisas mudaram. Durante esses anos eu tenho ouvido histórias sobre o caminho, sobre a mudança de pesos para euros, sobre a crise da economia espanhola, etc. Uma das maneiras de que a Espanhan se serviu para vencer a crise econômica, creio que foi o incremento do turismo. Com isso, o caminho ganhou em conforto, as trilhas se tornaram mais bem sinalizadas, o governo se preocupou com a manutenção das trilhas... e os albergues deixaram de ser gratuitos. Quando acabar o meu período de hospitaleira, vou caminhar novamente até Santiago e ver as mudanças nos albergues.
Mas este em que estou trabalhando, continua como antigamente. É um albergue pertencente à paróquia de Santiago El Real. Um dos mais antigos. A igreja foi construída para ser um abrigo e refúgio de peregrinos, durante a Idade Média. A cidade de Logroño nasceu e cresceu em virtude de estar localizada num cruzamento de várias estradas dentre as quais a principal era o caminho dos peregrinos de Santiago. Continua sendo gratuito, continua sendo acolhedor, oferece cama, comida, e benção aos peregrinos. Para isso trabalham os hospitaleiros. Limpamos tudo, lavamos a roupa de cama e fazemos comida. Trabalhamos muito. E tivemos uma reunião com o pároco que nos falou sobre a importància da acolhida. Estou contente de estar aqui.
Hoje é meu primeiro dia. Ganhei a chave da porta. Me senti importante, com ela pendurada no pescoço. Descobri que pela manhã, depois que os peregrinos saem, e depois da faxina, a internet funciona. É a melhor hora para escrever. Mas, ainda tenho muito assunto atrasado. Vou
escrever sempre que puder e a internet permitir.
Você já pode dizer eu li na tela da
Eulina
quinta-feira, 29 de agosto de 2019
PAMPLONA
Existem cidades frenéticas. Eu moro em uma delas. Onde tudo acontece ao mesmo tempo e o tempo corre. Outras são letárgicas, onde nada acontece e o tempo não passa. Pamplona tem o tempo certo. Tem os horários malucos da Espanha, mas sem os extremos. Na medida da vida que flui.
De manhã cedo, por volta de 7h, vários cafés estavam abertos e cheios de gente. Entrei em um deles é entorno tomava café, observei um grupo animado de mulheres e homens na mesa ao lado, mais ou menos umas 10 pessoas, às vezes mais, as vezes menos, conversando, dando risadas lendo e comentando as notícias do dia (havia jornais em cima das mesas) e lendo alto o horóscopo de cada um. Davam muitas risadas. Até que ás 7,30h, todos se levantam desejam bom trabalho e se despedem "hasta mañana". Depois andei pela cidade e vi que em vários cafés ocorria o mesmo. Os amigos se encontam antes do trabalho, confraternizam no "desayuno" antes do trabalho. Depois os cafés fecham. Às nove está tudo fechado.
A cidade é silenciosa, o trànsito flui sem lentidão e sem barulho. Poucas pessoas na rua . Tudo fechado. Chego a pensar que é feriado. Poucos carros poucos pedestres, lojas fechadas. Passeio tranquila. Às 11h quero almoçar, já que vou tomar o ônibus para Logroño às 3h. Nenhum restaurante aberto. Tive que me contentar com um "pintxo"! Que pode ser um pequeno sanduíche, uma salada, um petisco... Tudo só abre às 14h. As lojas inclusive. Que coisa!
Um dia antes, já tinha me espantado com a calmaria na cidade, mas depois, da sete, as ruas se enchem de gente. As famílias saem, lotam as praças, as crianças brincam nas ruas, enquanto os padres/madres, abuelos/abuelas conversam nos bancos. Eu me sentei em um banco e ao meu lado havia um velhinho lendo "Vida y mureta de La República Española"! E ele nem tinha cara de intelectual!
Ruas estreitas, vem em minha direção, uma menininha bem pretinha, bem lindinha com cabelos de trancinhas espetadas, eu sorrio pra ela. Ela põe uma grande língua cor de rosa pra mim. Dou risada, e também ponho a língua pra ela. Ela faz careta, eu também faço. Ela vai embora com a cara enfezada. Eu fico rindo.
Às 8h, sol brilhando. Na Plaza Del Castillo, tem um coreto com uma banda. A banda toca e as famílias dançam. Fazem uma grande roda, deixam suas bolsas, sacolas, casacos empilhados no meio da roda e dançam todos juntos em roda, batem palmas, giram, pulam, levantam uma perna, a outra, todos sabem a coreografia! Muito lindo! Eu olho bem nos olhos das pessoas: estão brilhando!
Nessa hora, havia bem poucas pessoas com celular. Os jovens também dançavam. Não tinham tatuagens, piercings, cabelo azul! Eles dançavam na praça!
E ontem, não era festa de nada! Um dia comum. Povo feliz.
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Eulina
terça-feira, 27 de agosto de 2019
Olá!
Cheguei hoje em Pamplona. Citade linda! Já compare I passages para Logroño . Estou ansiosa por começar o meu novo trabalho.
Estou escrevendo direto no blog, pela primeira vez.
O voo de São Paulo a Madri foi ótimo. Depois houve um certo stress no aeroporto de Madri, porque o voo da conexão não estava no painel, entáo eu não sabia qual gate era o meu. E havia um totem eletrônico para informar. Quem me conhece sabe o drama. Enfim, nos últimos 15 minutos ante, incluíram o voo no painel. Só nessa hora eu soube o gate. Tive que sair correndo, pelo enorme corredor do aeroporto, cheguei bufando.
Enfim, deu certo.
Agora vou sair para jantar o menu do peregrino.
Você já pode dizer eu li na tela da
Eulina
quarta-feira, 21 de agosto de 2019
ERA UMA VEZ UMA CABRITINHA
Nasceu na
América do Sul, no começo da selva amazônica, ao pé da Cordilheira dos Andes.
Era
curiosa. Era obstinada. Resolveu que queria subir os Andes. Queria chegar bem
perto do céu. Queria ver o horizonte bem longe.
Vivia com a
família, nos vales úmidos, perto dos rios encachoeirados que vão crescendo e se
juntando para formar o Amazonas. Era uma bela paisagem. A cabritinha gostava.
Mas continuava querendo subir as montanhas. Ela achava que quando visse o mundo
do alto, saberia muito mais coisas e seria muito mais feliz. Na verdade, a
cabritinha queria saber mais. Achava que a felicidade estava na sabedoria.
E foi crescendo.
Sempre com a mesma ideia. Sempre se preparando para subir as montanhas.
Até que um
dia, sentiu-se suficientemente forte.
Achou que estava preparada. Despediu-se da família, juntou-se a um bando de
outras cabritas que também queriam subir e partiu. Andou, andou, com muitas
cabras, bodes cabritos todos muito animados com as aventuras que os esperavam.
No começo,
foi muito divertido. Iam todos contando histórias, rindo, cantando... Depois de uns dias, começaram a reclamar do
cansaço, do desconforto, mas ainda estavam imbuídos do mais alto espírito
aventureiro. Na verdade, o grupo se encorajava mutuamente, quando um ameaçava
desanimar, os outros o encorajavam.
E assim
foram subindo, subindo. Os caminhos se tornavam mais difíceis, as subidas mais
íngremes. O cansaço foi aumentando. E o descontentamento também. Quando o
primeiro desistiu, foi uma comoção. Todos ficaram em silêncio. Ficaram se
questionando:
- Será que eu consigo? Será que eu quero?
Mas a nossa
cabritinha não desanimava. Era obstinada. Continuava firme no seu propósito.
Queria chegar no alto, ver o horizonte de longe. Queria saber mais.
O tempo foi
passando, e mais e mais cabras, bodes e cabritos foram desistindo. Os primeiros
justificavam a desistência, davam explicações. Depois, não havia mais
necessidade de explicação. Desistiam e pronto. O grupo foi se tornando cada vez
mais reduzido.
O caminho, a
cada dia mais difícil, árido, gelado, o ar rarefeito, quase não havia vegetação
e o grande número de pedras soltas tornava a jornada mais perigosa. Mas a nossa
cabritinha não desistia.
Às vezes ela
ficava apreensiva:
- Será que dou conta? Será que terei forças? Estou tão cansada,
tenho tanto frio... e então aparecia um amigo para reanimá-la. Assim como ela
também reanimava os amigos que fraquejavam.
Ela olhava a
paisagem cada vez mais do alto. Sua vista alcançava cada vez mais longe... via as
cidades, os vilarejos, as estradas, os campos, as outras cabras, tudo cada vez menor,
mais distante. O mundo lhe parecia tão belo, tão pacífico, a vida tão simples,
bastava caminhar, comer e descansar, para ter acesso a toda aquela beleza, toda
aquela paz... Esses momentos valiam todo o esforço. E a cabritinha se sentia
recompensada. Sentia que estava aprendendo muito, que estava no caminho certo,
que era isso mesmo que ela queria.
E nesses
momentos, sua alegria era tanta, que ela queria repartir com todos os companheiros! Era alegria demais, não cabia
dentro do peito, tinha que ser dividida, partilhada!
Mas... toda
essa felicidade tinha seu preço. Os poucos amigos que restavam, estavam muito
ocupados com suas próprias jornadas. Já não andavam mais em grupo... ela os
encontrava somente nas paradas de descanso, quando procuravam algum lugar
seguro para pernoitar. Estavam sempre tão cansados que pouco se falavam. Ela
procurava lembrá-los da animação do começo, das cantorias, das histórias e
risadas, mas quando percebia, eles já estavam dormindo e não dava tempo de
falar das belezas que tinha encontrado pelo caminho. Quando havia algum
problema, ela ainda tinha ajuda. Mas era uma ajuda eficiente e silenciosa. E
então, ela compreendeu que só tinha companhia nos momentos difíceis. As
alegrias eram solitárias.
Porém ela
não desanimava. Continuava a subida. Estava resolvida a ver o mundo do alto.
Queria continuar subindo. Queria continuar aprendendo. E ficava cada vez mais
só.
E é assim
até hoje. A nossa cabritinha continua subindo. Continua aprendendo. Já não
avista quase ninguém. Quando tem oportunidade de olhar a paisagem, fica
deslumbrada. Continua curiosa. Continua persistente. Continua solitária. Mas
está também mais forte! Mais certa de que encontrou o seu destino! E - por que
não? – cada vez mais feliz!
E espera que
quando chegar ao fim da jornada, encontre outros cabritos curiosos e
persistentes para compartilhar o deslumbramento com ela.
quarta-feira, 14 de agosto de 2019
A
DIFÍCIL TAREFA DE EDUCAR II
- Mas eu já te disse milhões de vezes!
- Mãe, esse é um super exagero!
- E você é hiper
desobediente!
- E você é mega chata!
- Eu vou é te dar um blaster castigo!
- Não mãe, aquele não! Eu te imploro!
- Sim! Zilhões de vezes sim! Você vai ficar sem tablet e
sem celular, por trezentos dias!
- Ah mãe, eu vou ficar doente de solidão!
- Que é isso, menino? Voce tem mais de um milhão de amigos!
- Mas são virtuais! Em carne e osso eu só tenho a Glorinha,
que é chata, chatíssima, chatérrima!
- Então vai logo arrumar o seu quarto, senão...
***
- Pronto mãe, está super arrumado.
- Super arrumado... deixa eu ver o guarda roupa!
- Ah mãe, você disse o quarto e não o guarda roupa.
- Hum... então só
duzentos e cinquenta dias!
- Duzentos e cinquenta dias? Só cinquenta menos?
- Então arrume o guarda roupa, que eu diminuo mais!
- Você é trocentas vezes chata!
***
- Pronto mãe, olha o guarda roupa!
- Posso abaixar e olhar debaixo da cama?
- Mãe, já arrumei o quarto e o guarda roupa! Chega não?
- Chega, mas são 150 dias sem o milhão de amigos virtuais.
***
- Pronto mãe, quarto, guarda roupa, e debaixo da cama! Agora
chega!
- Vou ver a sapateira.
- Ai... me ferrei de novo!
- Agora são cem dias de solidão virtual...
***
- Pronto mãe, quarto, guarda roupa, debaixo da cama e
sapateira!
- Deixa ver... ah, agora sim você zerou, pode continuar com
seus zilhões de amigos! Vem cá, me dá um abraço!
***
Dias depois,
a mãe vai limpar o quarto de hóspedes e descobre que a super, ultra, mega,
blaster bagunça está toda empilhada atrás do armário. Ela diz sorrindo:
- Meu Deus, me dê uma super, ultra, mega, blaster paciência!
***
Tarefa: Texto explorando o exagero.
A DIFÍCIL TAREFA DE
EDUCAR
- Mas eu quero do jeito mais fácil!
- Deixa de ser preguiçosa!
- Não vejo utilidade nenhuma em fazer tudo sempre do jeito
mais difícil!
- É... de vez em quando, você até pode ter razão...
- Eu sempre tenho razão!
- Aff! Mas às vezes você é insuportável!
- Mas é verdade! Eu sempre tenho razão!
- Você tem é muita pretensão!
- Mas eu falo a verdade!
- Além de tudo, é teimosa.
- Só porque estou falando a verdade?
- Não! É porque você está inflando o seu ego!
- Você é uma chata, sabia?
- E você é metida, sabia?
- Muito chata, você fica o tempo todo me acusando, me
botando pra baixo!
- E você fica o tempo todo se auto elogiando, se botando pra
cima!
Silêncio. Troca
de olhares. Suspiros.
- Tá bom, vamos voltar ao começo. Tire a casca do tomate
antes.
- Por quê? Eu quero bater no liquidificador, com casca e
tudo!
- Se você não tirar a casca, o molho vai ficar muito ácido.
- Eu ponho açúcar pra cortar a acidez.
- Não é a mesma coisa!
- Não! É mais gostoso!
- E se você esmagar o tomate sem casca na panela e depois
passar na peneira, o molho vai ficar muito mais encorpado, mais...
- Ahn... e eu vou ficar mais irritada, porque vai demorar
muito mais!
- Não! Não cozinhe irritada porque a comida vai fazer mal!
Você tem que cozinhar com carinho!
Silêncio.
Olhares furiosos. Mais suspiros.
***
Apesar da fúria, o molho ficou
delicioso. Mãe e filha foram elogiadas pela bela macarronada. Até a nona, tão
exigente, gostou. Ambas agradeceram
sorridentes, mas antes trocaram uma piscadela. Cumplices.
***
Tarefa: Diálogo.
terça-feira, 13 de agosto de 2019
SALVADOR
Salvador, no carnaval. Sonho longamente acalentado.
Desde que Caetano disse, pela primeira vez, que quem não vai atrás do trio
elétrico já morreu, Helena queria passar o carnaval em Salvador. Mas num ano
tinha trabalho, noutro aquele convite imperdível para Ilhabela, noutro não
tinha companhia... fazia tempo que queria ir e não conseguia.
Mas hoje,
estava lá. E era perfeito. Estava comemorando o final de um relacionamento
longo e doloroso. Nada melhor do que um carnaval na Bahia.
Logo no
primeiro dia, os amigos resolveram ficar na piscina do hotel. Helena achava um
desperdício!
- Depois de tantos planos, consegui dez dias de folga, passagem, estadia, em
pleno carnaval da Bahia, e vocês
querem ficar na piscina! Vocês já morreram! Eu vou atrás do trio elétrico!!!
E foi. No táxi, nem sabia
pra onde ir. Não conhecia Salvador. Pensou
depressa. Lembrou-se do cartão postal.
- Para o elevador Lacerda, moço.
E deslumbrou-se com a paisagem, com o mar, o sol, e,
principalmente,
com sua própria excitação. Entrou na fila para subir o
elevador, sentindo-se num livro de Jorge Amado.
Quando saiu do
elevador, quase perdeu o fôlego. Seus trinta e dois anos de vida não tinham
registro de nenhum momento como esse. O som, os cheiros, as cores, o ritmo, o
ritmo, o ritmo... Alucinante! Sentiu a energia do ar, entrando pelos seus poros
e correndo em todas as suas veias, a vibração na pele, os tambores no peito...
Pôs a mão no peito. Tremia mesmo. As pernas , primeiro bambearam... depois,
começaram a acompanhar os tambores, e o movimento foi subindo, subindo, chegou
nos joelhos, na cintura - nesse momento, ela se percebeu rebolando – e aquela
onda continuou subindo, chegou no peito trêmulo – e então, ela descobriu que
quando se movimentava, o tremor diminuía –
aí, começou agitar os braços e mergulhou de vez. Mergulhou de
cabeça naquele mar de gente.Foi atrás do
trio elétrico. Afinal, estava viva. E como! Não demorou a coordenar os movimentos.
Entrou no ritmo. Soltou-se todinha. Cantava, rebolava, pulava, olhava em volta,
reproduzia as coreografias dos baianos. Logo, começou a criar algumas
coreografias. Era a alegria explodindo em todos os seus cinco sentidos.
Depois de algum tempo, não sabe dizer quanto, sentiu uma mão na sua cintura.
Olhou. Um jovenzinho, quase adolescente. Moreno escuro? Mulato claro? Não
importa. Era bonito. Belos ombros. Rebolava bem. Tinha ritmo.
- Posso? – seus olhos eram claros, quase amarelos e
sorriam.Helena não disse nada.
Sorriu também e pôs a mão na cintura dele.
Ficaram pulando juntos.
Sem noção do tempo. Enquanto dançavam e
cantavam, Helena reparou que seus dentes eram lindos e seus braços eram
fortes e protetores. Foi muito bom se sentir protegida por aqueles belos ombros
e aqueles braços fortes.
- Vamos parar um pouco? Eu estou com fome.
- Olhe... a baiana tem acarajé.
Cada um pagou o seu.
Helena adorou o acarajé. Depois, acharam uma tendinha que vendia pinhas.
Compraram logo uma dúzia. Saíram comendo e cuspindo as sementes, como
metralhadoras. Tomaram cerveja e água de coco. Riram muito. Andavam de mãos
dadas e ele ia mostrando as coisas do Carnaval da Bahia, ao som do trio
elétrico. Ao pé das igrejas, os baianos rebolando, os casais se enroscando...
Deus e o Diabo na terra do sol. E que sol... quando os miolos já estavam quase
derretendo, chovia. E todo mundo continuava pulando, cantando e rebolando na
chuva. Bendita chuva.
E assim foi o dia.
-
Como você se chama?
-
Dalton. E você?
-
Helena.
-
Helena... é de onde? – a fala cantada, cheia de
malemolência...
-
De São Paulo.
- Eu sou daqui mesmo... moro ali naquela rua
... Vamos ver o sol se pôr na Barra?
Foi lindo o pôr do sol. Chuparam mangas,
ficaram com a boca amarela. O primeiro beijo foi assim. Amarelo. O céu também
estava amarelo, da cor da manga, da cor do beijo. O beijo teve a cor do céu.
-
Preciso ir embora. O pessoal no hotel deve...
-
E amanhã?
-
Amanhã eu volto.
-
Ta bom, eu te espero naquela praça, perto da minha
casa.
-
Dez horas tá bom?
-
Tá. Olhe um táxi.
Nos
dias seguintes, Helena e Dalton dançaram mais, pularam mais, rebolaram mais,
deram muitos beijos amarelos, metralharam muitas sementes de pinha, tomaram
mais chuva, sol, cerveja, água de coco. Helena carregava uma sacola comprada no
mercado modelo, com uma toalha, apetrechos de praia além do dinheiro e
documentos. Assim, estava preparada para qualquer programa, pois ia de biquíni
por baixo do vestido. O Carnaval acabou. Os amigos voltaram pra São Paulo,
Helena adiou a volta. Queria ficar mais.
Uma manhã, Helena experimentou um acarajé
“quente” e cuspiu tudo, enquanto Dalton ria e comprava outro sem pimenta.
Helena se vingou fazendo Dalton acompanhá-la a um museu. Ele foi e ficava
olhando pra ela admirado.
-
O que é que você veio fazer aqui?
-
Vim conhecer o museu. Você tem idéia melhor?
Ele respondeu rapidinho.
Olhos matreiros. Sorriso idem.
- Eu tenho...
Helena também ri.
-
Aonde vamos, então?
- À lagoa.
-
Que lagoa?
-
Abaeté.
Tomaram
o ônibus. Demorava. Iam passando por Ondina, Amaralina, Itapuã, muitas praias, muitos
coqueiros, muitos beijos. Helena ia sentada perto da janela, sentindo o vento
bater no rosto e a mão de Dalton ora no seu ombro, ora na cintura, ora...
A
lagoa era linda. Cercada de dunas brancas.
Primeiro,
subiram as dunas. Ficaram olhando para a mancha azul da lagoa, lá embaixo.
Fazia um sol de rachar a moleira.
-
Vamos descer na correria?
Ficaram só com roupa de banho, e desceram correndo e gritando. A cada
passo, a areia sôlta escorregava debaixo dos pés e a sensação era de queda, mas
aí a perna se firma e é possível dar outro passo. Adrenalina correndo nas
veias. Tarzan deve ter sentido isso quando inventou o grito. Nem montanha russa
nem looping... é muito mais radical, é igual ao cipó do Tarzan, não dá para
frear. Eles correram, correram e caíram dentro da lagoa...
Que
delícia! Com aquele calorão, a água era tão boa... Eles se embolaram dentro da
água, fizeram uma guerra molhada, dando tapas na superfície da lagoa e quase
sufocaram de tanto rir. Depois saíram e começaram a subir de novo. Iam repetir
a façanha. Quando chegaram em cima da duna, Dalton teve uma idéia melhor...
-
Que tal aqui e agora?
Helena olhou em volta,
Dalton também. Não havia ninguém à vista. Tudo
silencioso,
tudo deserto. Helena sorriu.
-
Aqui e agora. O sol por testemunha.
Estenderam a toalha no
chão, beijaram-se muito, abraçaram-se muito.
Dalton
tirou o sutiã de Helena. Ao ver seus peitinhos, exclamou sorrindo:
-
De menina... de menininha... – e beijou-os
devagarzinho.
Helena
fechou os olhos... O primeiro beijo tinha gosto de manga, o banho na lagoa lembrou
as rajadas de sementes de pinha... e agora? A queda livre e louca da descida da
duna? ... O acarajé “quente”? Mas... que
coisa boa! Vem Dalton, vem tocar sua
música na minha casa... Entre, que a casa é sua, dance a sua dança, no seu
ritmo, assim, devagarzinho... – Helena pensava enquanto também acariciava
Dalton – agora mais forte... mais rápido...
Dalton com todo o vigor
de seus vinte e poucos anos, entrou, dançou no seu
ritmo,
tomando muito cuidado para não assustar aquela moça da cidade grande, tão
bonita e tão... frágil? ... não, não parecia frágil... inexperiente?... não,
não parecia inexperiente... carente? ... é... acho que é isso... ela parece
carente... E se sentiu responsável... preciso tratá-la com muito carinho, muito cuidado,
para não
machucar... quero que ela seja feliz, comigo.
E assim foi.
Eles começaram bem devagarzinho... bem de mansinho... e pouco a pouco, foram entrando
no ritmo alucinante dos trios elétricos até sentiram no peito, o estrondo dos
tambores... Terminaram assim. Exaustos. Ofegantes. Felizes. Sentindo o sol
arder na pele e ouvindo apenas o silêncio das dunas... até que...
Palmas. Pedidos de bis. Mais um, mais um. Por que
parou, parou por que...
- Meu
Deus, o que é isso? - Helena e Dalton ergueram o corpo e olharam espantados, na
direção das palmas... lá embaixo, ao pé da duna, um grupo de uns vinte meninos,
já adolescentes, entre doze e dezoito anos, talvez... rindo, fazendo a maior
algazarra,
- Mais um... mais
um... mais um....
Helena e Dalton se levantaram correndo,
morrendo de vergonha, morrendo de tanto rir, cataram as coisas, os maiôs caíram
na areia, Helena passava a toalha nas pernas, enquanto Dalton sacudia a areia,
sempre ouvindo as risadas e os pedidos
de bis dos moleques, se vestiram correndo, sunga, calcinha, sutiã, o sutiã
estava difícil de abotoar, Helena enfiou de qualquer jeito as coisas na sacola,
acabou de limpar as pernas, se enrolou na toalha e saíram correndo...
Dessa vez a descida da duna foi
desenfreada mesmo! De perder o fôlego! A
cada passo, uma vertigem... Helena perdeu o equilíbrio e Dalton, na corrida foi
ajudá-la, perdeu o equilíbrio também, e os dois se embolaram vertiginosamente
até a água. A sacola se abriu e todas as coisas se espalharam pela descida...
Até que aos trambolhões, caíram na água e quase se afogaram de tanto rir.
Ficaram assim por um tempo. Dentro d’água, rindo e se refrescando, torcendo para
que os moleques tivessem desistido de acompanhá-los. Depois de uma meia hora,
mais ou menos, e de muitos beijos geladinhos, eles resolveram sair da água.
Helena se enrolou na toalha que havia
caído perto da margem e os dois subiram a duna, para recolher as coisas. Tudo
recolhido, tudo conferido, não faltava nada, os meninos felizmente tinham ido
embora, eles resolveram dar a volta na lagoa, até uma barraquinha para tomar
uma merecida cervejinha, depois de tantas aventuras...
E lá se foram os dois, de mãos dadas,
felizes da vida. Chegaram na barraca fresquinha, com cobertura de sapé,
sentaram-se nos banquinhos. Helena, finalmente se desenrola da toalha e Dalton
cai na gargalhada.
-
Que foi? Quero rir também!
-
Seu sutiã – a voz quase não sai de tanto rir – está do
avesso!
Depois do último beijo, no aeroporto,
Dalton disse:
-
Eu nunca vou me esquecer de você.
Ou será que foi Helena que disse
isso?
Na verdade, não importa. Hoje, muitos carnavais e
muitos amores depois, a lembrança daquele carnaval e daquele amor, produz os
melhores sorrisos, tanto em Helena, quanto em Dalton. Ambos cumpriram a promessa.
***
Esse conto não fez parte da oficina literária. Foi
escrito muitos anos antes.
ROSILDO E ROSÉLIA
O belo homem chegou bem perto do Rosildo e
disse:
- Olhaí no seu aparelho, eu trouxe a lista. É só você
escolher um pecado.
Rosildo pega
o celular e nem precisa ligar, a lista já está na tela. “Ele tem poderes”
pensa.
- Vamos começar pelo primeiro: Orgulho. Será que escolho
esse?
- Sei lá... às vezes não me parece pecado. As pessoas se
orgulham da família que têm, estufam o peito com o hino nacional, quando fazem
um trabalho bem feito ou quando seu time
ganha um campeonato... não vejo maldade nisso...
O belo homem
tem uma expressão de dúvida, seus olhos oscilam entre o verde e o azul
metálico.
- Então Orgulho não é pecado? Eu ia escolher esse!
- Em algumas situações sim! É só ver a arrogância dos
políticos! Barriga cheia, bolsos também, peito cheio de superioridade e cabeça
vazia de ideias. Quando é assim, é um pecado, dos bons! – Os olhos assumem um
verde metálico intenso e os cabelos se despenteiam no alto, parecem crescer,
encorpar – Mas esse é um pecado para gente inteligente. Você não conseguiria.
Vamos partir para outro.
- Avareza? Será...
- Avareza não, seu burro! Um pé rapado como você não pode
ser pão duro, só pode ser duro mesmo!
- E Luxuria? Bem que eu gostaria...
- Você não se enxerga? Muito luxo, muitas mulheres, muito
sexo, muitos vícios... Você não tem dinheiro suficiente e nem competência, pra
cometer esse pecado!
O belo homem
já não está tão belo. O alto de sua cabeça cresce, seus olhos são cruéis, seu
hálito é fétido.
- Inveja?
- Ah! Esse você pode! – ele volta a ser belo imediatamente.
- Tá bom. Então eu fico com esse – Rosildo quer acabar logo
com esse papo – Vamos planejar as ações?
- Deixe de ser apressado! Só podemos escolher depois de
verificar a lista inteira. Vamos ao próximo.
- Ah, Seu Lulu, assim tá ficando muito difícil!
- Seu Lulu é a mãe! Olha lá rapaz, se você me chamar de Lulu
novamente, eu não faço trato nenhum! – Ele fica feio de novo, os olhos variam
do amarelo para o vermelho, a cabeça dele cresce, a pele escurece. Rosildo tem
medo.
- Tá bom, tá bom, vamos ao próximo: Gula. Pensando bem, esse
eu não quero. Se escolher esse, eu engordo e para conseguir o que desejo,
preciso ser bonito.
- É ... acho que você tem razão. Você precisa, pelo menos
ser bonito. – Ele olha Rosildo de alto a baixo, meio desanimado. – Será que
você consegue sentir Ira?
- Ah, quando eu penso no IPTU, no IPVA, no IR... Quando o “sistema”
cai na minha vez, depois de horas de fila... Quando me fecham no trânsito, me
dá vontade de matar alguém!
- Hum, hum... essa sua Ira não me convenceu muito. Mas o
próximo é a sua cara!
- Qual é o próximo, seu Lu...
- O homem fica feio outra vez. Muito feio. Pele escura,
hálito de enxofre, olhos de fogo.
- Não se atreva nem a pensar nesse apelido ridículo. Eu
exijo respeito!
- Qual é o próximo, senhor?
O homem
acalma um pouco. Até é capaz de um pequeno sorriso.
- O último: Preguiça.
- Ah, mas que pecado gostoso! Pra esse eu sou perfeitamente capaz. Então tá
resolvido. Eu tenho que cometer três pecados: Inveja, Ira e Preguiça. E em
troca...
- Há... há... há... - O homem riu uma risada maldosa, soltou
um arroto de enxofre, cuspiu as palavras de maneira asquerosa - Não, não, não!
Nosso trato é para um pecado só! Mas um pecado que seja cometido com toda a
intensidade possível, com todo o ódio de que um ser humano for capaz, que seja
a fonte de muitas maldades... – ele falava com empolgação, arrotava enxofre,
vomitava um líquido pútrido e ria, ria muito enquanto falava.
Rosildo
olhava assustado, estava quase arrependido.
- Vamos Rosildo escolha logo o seu pecado! – grita, feroz.
Cresceram chifres no alto de sua cabeça e ele brandiu um tridente.
Rosildo se
arrepende de vez.
- Olha seu Lulu, ou melhor, senhor Lúcifer, eu desisti. Não
quero pecar assim. Não vou mais vender minha alma. Pensando bem, a Rosélia não
merece. Ela que fique com aquele namorado sonso dela!
***
Tarefa: Texto sobre os pecados capitais.
segunda-feira, 12 de agosto de 2019
QUASE PRECONCEITOS
Um dos
últimos cinemas de rua. Plateia muito diferente daquela dos cinemas de shoppings.
Olho em volta. Salão de espera bem cheio. Observo a fila da pipoca.
Vários pares
de intelectuais gays conversando muito, gesticulando muito, discutindo temas da
moda. Às vezes, trocam olhares intensos. Alguns ostentam barbas bem cuidadas e brinquinhos
discretos. Outros usam óculos. Quando me olham, mostram uma certa arrogância
defensiva. Mas no geral, nem me olham.
Grupos de
mulheres com roupas esquisitas falam sobre temas feministas. Algumas são
lésbicas, seguram a mão de suas parceiras. Seus olhares são quase agressivos.
Empoderadas.
Mulheres,
muitas mulheres, a maioria parece ter por volta de cinquenta anos, cabelos
claros, cheios de luzes. Devem gastar muito em cabeleireiros. Bem vestidas,
roupas de grife.
Dois
velhinhos com bengala. Talvez os únicos machos do sexo masculino.
Um casal
jovem. Ele sarado, cheio de músculos, braços tatuados cabelo moicano. Ela bem
bonitinha, olhos muito maquiados, cabelo roxo e argola no nariz.
Muitos
casais descolados, homens de óculos e barbas, mulheres com saia longa e cabelos
desgrenhados. Parecem ser militantes de alguma causa naturalista ou vegana.
Olhares de quem conhece seus direitos.
E eu aqui
parada. Toda óbvia!
- Óbvia? Como assim óbvia?
- Saia combinando com a blusa e sapatos combinando com a
bolsa.
- E isso é ser óbvia?
- Uma vez, eu fui para o Havai. Adivinha o que eu trouxe de
presente para minhas filhas?
- ???
- Sandálias havaianas.
- Ah! Entendi.
- Eram ruins. As do Brasil são melhores.
- Hum.
As pipocas
estavam boas e o filme foi ótimo.
***
Ele entrou no meu quarto. Magro, muito
magro. Luminoso, quase transparente. Olhos em chamas. Ou melhor, um olho em
chamas e o outro em lágrimas. Acho que tinha chamas nos dois olhos, mas as
lágrimas apagaram as do olho esquerdo.
Tenho medo.
Ele tenta me acalmar, emitindo raios azuis com as mãos esquálidas. Os raios são
calmantes. Eu sossego um pouco. Só um pouco. Pelo menos, paro de tremer.
Ele chega mais
perto - Ai, meu Deus! - Move suas longas pernas e faz gestos com seus longos
braços – Jesus! - Não emite som algum, mas parece estar gritando. Eu permaneço
deitada em minha cama, imóvel, inerte, sem saber se estou muito curiosa ou
muito apavorada.
Quero saber quem ele é, ouvir sua voz,
perguntar de onde veio e o que quer comigo. Mas as palavras morrem na minha
garganta. Não digo nada. Fico só olhando aquele assustador conjunto de ossos
luminosos, cobertos por uma carne quase transparente, que vem se aproximando
devagar gritando silenciosamente e me olhando com seus olhos de fogo e água.
Reúno todas
as minhas forças. Quem sabe se eu conseguir falar alguma coisa, ele me
responde? A curiosidade vence o pavor:
- Quem é você? – voz trêmula, fraquinha, fraquinha, quase
inaudível.
- Sou o seu ódio! – voz forte, porém macia. Não está
gritando em silêncio, como eu achei que fazia.
- Meu ódio?!?! – espanto - Como?
- Moro dentro de você! – agora, ele grita!
- Não!!! Eu não quero
isso, não tenho nada tão horrível dentro de mim! - Percebo que quem grita em
silêncio sou eu.
- Ha, ha, ha – risada medonha – ninguém admite nem gosta de
seus próprios ódios! – Seu olho direito cospe chamas.
- Eu não tenho ódios!!! – grito com todas as minhas forças.
- Não? – mais risada - Nem quando seu homem vai beber com os
amigos? E quando alguém te dá uma dica
de chá para emagrecer? E quando seu cabeleireiro erra a mão e corta demais o
seu cabelo?
- Mas, eu não... –
grito indignada, mesmo sabendo que não sou ouvida. Continuo gritando. Só interrompo quando
percebo que ele está ficando cada vez mais e mais transparente e seu olho
esquerdo chora lágrimas ferventes, que evaporam, fazendo uma nuvem negra,
tenebrosa. Ele está desaparecendo atrás dessa nuvem.
- Ei! Não vá embora! Me escuta! Eu não... – grito, grito, em
silêncio.
E ele,
sempre rindo sua risada cavernosa, fala com sua voz macia:
- E “aquela” mensagem no WhatsApp?
- Ai, que óóóódiooo!!! – grito sem perceber.
- Ha... ha... ha... viu?
E some.
Resta apenas a nuvem negra.
***
- Você outra
vez? – já falei brava.
- Quase – voz cavernosa.
- Como assim, quase?
- Eu mudei um pouco...
Observo melhor. Agora que admiti que tenho
alguns ódios, não tenho mais tanto medo. Ele não está mais tão magro. Olhando
bem, até parece meio gordinho. Nem tão transparente, está mais consistente, mas
os olhos... ah... os olhos continuam ameaçadores. Agora trabalham em conjunto.
Ora cospem chamas, ora choram lágrimas ferventes.
- Por que você voltou? - atrevo-me a perguntar.
- Eu vi a carta que você recebeu.
- A da Embaixada?
- Essa mesmo. Você não vai abrir? – ele não fala, ele
vocifera! Seus. olhos piscam labaredas!
Reúno minhas
forças para responder.
- Tenho que abrir, mas...
- Mas... – ele se aproxima gritando.
Eu me
encolho. Ele arregala os olhos. Posso ver suas lágrimas, antes de ferverem!
Tenho medo, pavor, estou paralisada. Ele vai chegando cada vez mais perto...
- Não! – grito e não ouço o meu grito - Não chegue tão
perto! Fique longe de mim!
- Sua boba! Eu moro dentro de você, esqueceu? Não chegue
perto... ha... ha... ha... Diga logo, vai ou não vai abrir a carta? – Sua voz
parece um trovão, uma ventania, uma tempestade!
E a tempestade se aproxima. Eu aterrorizada
segurando a carta com mãos trêmulas... ai meu Deus, tenho que abrir a carta,
senão...
Nesse
momento, outro estrondo, um pé de vento! A janela se abre e a carta...
A carta voa!
O monstro
cospe fogo com os olhos, depois chora vendo a carta ir embora levada pela
ventania. Ele fica ainda mais feio, mais
ameaçador, mais tenebroso... e diz, antes de sumir na nuvem negra:
- Agora, eu sou sua curiosidade!
***
Ele
novamente no meu quarto! Quase não o reconheço!
- Você de novo! Nossa, como você está diferente! – meu medo
sumiu!
Fico olhando
admirada. Está gordo, não é mais transparente, seus olhos não têm mais fogo nem
água, são verdes. Embaçados, aguados, enfumaçados, opacos, que se mostram
alternadamente com assustadores buracos negros vazios... Os buracos tem um
poder de sucção, eu me seguro para não ser sugada.
Os olhos me
olham durante os momentos em que se mostram... Ele até sorri um pouco... parece
estar me convidando, mas se eu me aproximo, os olhos se esvaziam e os buracos
negros me chamam... Meu pânico retorna! Estou toda aterrorizada, na defensiva.
- Vá embora, não quero mais você! – falo comum fio de voz –
não quero mais você dentro de mim!
- Eu volto para o meu lugar, mas só porque o seu pânico
reapareceu. Mas um dia, você vai me aceitar!
Vai perder todo o medo! Nesse dia eu vou embora para sempre. – Ele está manso, sorridente, gordinho e com
olhos inteiramente visíveis.
- O quê?!?!? O quê é
que tem uma coisa de ver com a outra?
Ele fica todo
gordinho, fofo, sorridente, voz macia, simpático. Parece inofensivo, mas meu
pânico recomenda permanecer desconfiada.
- Agora eu sou o seu
tédio!
E some.
E eu
descubro que esse é o maior dos perigos.
***
Tarefa 1:
Criar e descrever um personagem. Fazer crônica, mini conto ou poema com esse
personagem.
Tarefa 2: o personagem recebe uma carta.
Terefa 3: finalizar.
A LENDA
Silvia
Silvia olha
para o marido deitado ao seu lado. Seu olhar é uma interrogação. Sua mente
também. Como entender o marido? O que se passa na cabeça desse homem? Por que
seu passado é tão misterioso? Por mais que tente, não consegue entender. Aliás,
é difícil até de acreditar.
Pedro
Mesmo adormecido Pedro tenta não sentir pena
de Silvia. De seus inúteis esforços para compreendê-lo. Na verdade, Pedro se
culpa pelas incertezas de Silvia, mas não consegue evitá-las. Suas poucas
lembranças o perseguem.
As memórias
de sua infância, pés descalços no chão de terra vermelha, a mata cheia de
mistérios... naquela época, a vida era o momento. O sol na pele nua, a flechada
certeira na caça para o almoço, as
danças de roda na noite estrelada, o frescor das águas dos pequenos rios e o
temor das águas dos grandes rios estão sempre presentes em sua mente.
Principalmente o temor das águas dos grandes rios, morada da Yara tão bela, tão
amada... Pedro sorri, enquanto dorme.
Silvia
Silvia sabe
que o sorriso vai se apagar e dar lugar a um
doloroso espasmo. Já vira essa cena inúmeras vezes. Ah, como ela queria
entender!
Pedro
Pedro também
queria entender. Mas as lembranças não o ajudam. Por mais que tente, as
memórias de sua infância terminam abruptamente e são seguidas por um vácuo, um
negror, um nada cheio de vento escuro, uivante e devastador. Nesses momentos,
Pedro geme.
Silvia
Silvia não o
acorda. Ela sabe que não consegue. Pedro abre os olhos, se vira na cama e dorme
novamente. Tantas vezes ela tentara, tantas vezes não conseguira.
Pedro
Passada a
ventania, Pedro já era jovem. No mesmo local, mas completamente diferente. As
matas são menores. Ao invés de campos há casas e quintais, ao redor dos
pequenos rios há plantações e ao invés da pele nua ao sol, roupas muitas
roupas. Todas as pessoas cobertas de roupas passeando por ruas pavimentadas com
pedras, tudo tão diferente do povo nu enfeitado de penas dançando no chão de
terra vermelha.
A terra
vermelha permanece, assim como os grandes rios. Pedro força a lembrança, mas as
imagens vão desaparecendo sumindo, se esvaindo num redemoinho cheio de sons,
luzes, fatos, memórias, tudo girando numa ventania, num turbilhão poderoso,
onde Pedro se perde mais uma vez.
Silvia
Ela
continua olhando o marido. Ele geme, mas ela sabe que logo vai parar. Foi
sempre assim. Desde que se se conheceram. Ele era tão bonito! Moreno, corpo
atlético, cabelos e olhos escuros. Ela se apaixonou imediatamente e depois de
tantos anos juntos, ela aprendeu a aceitar suas esquisitices. Até se acostumou com o mistério de seu
passado. Mas o que mais a intriga é a juventude de Pedro. Enquanto ela ganha
quilos, rugas e cabelos brancos, Pedro continua jovem, belo, atlético e fogoso.
Atualmente, parecia seu filho! E seus
pesadelos estão aumentando. Os primeiros eram raros, ela assustava quando via. Queria ajudar, se
preocupava, ia com Pedro às consultas de
médicos, psiquiatras, homeopatas, holísticos, achava que teria tratamento...
tudo em vão. Depois se acostumou. Viu que era assim mesmo e não se assusta mais.
Silvia não
sabe nada sobre o passado de Pedro. Porém não tem motivos para se queixar. Tem
certeza absoluta da fidelidade dele. E ele sempre se mostra tão apaixonado
quanto nos primeiros tempos do casamento. Ela fica triste por não ter filhos,
mas com certeza não foi por falta de empenho. Simplesmente os filhos não vieram.
Pedro não se importava e ela acabou por se conformar. Mas continua tendo
vontade de saber o passado de seu homem.
Pedro
Os pesadelos
estão se tornando mais e mais frequentes. E ele sabe que assim será até que...
Pedro ama Silvia, mais do que amou outras mulheres perdidas na ventania de seu
passado. Fica triste só de pensar em deixá-la. Mas sabe que é preciso. Procura cobri-la
de carinhos e mimos para compensar o seu futuro sofrimento.
Mesmo sem compreender, Pedro sabe que seu tempo está no fim.
Silvia
Ela não
entende. Seu amado, seu companheiro, seu querido marido, tão bonito, tão
carinhoso, à medida que ela fica mais velha e feia, ele fica mais dedicado,
apaixonado e misterioso. E com o sono cada vez mais agitado.
Pedro
- Silvia eu preciso viajar, fui designado para coordenar uma
pesquisa com os índios do Pantanal Você quer vir comigo?
Ele quer que
ela aceite. Deseja desfrutar de sua companhia mais uma vez.
- Que bom! Adoro viajar com você! Quando vamos?
- A equipe vai daqui a quinze dias. Mas eu proponho irmos
uma semana antes pra passear pela região. Uma nova lua de mel, o que você acha?
– ele sorri o seu melhor sorriso.
- Ah, Pedro, que delícia! Claro que eu acho ótimo! Vou fazer as malas já!
Silvia
“Que lindo é
aqui! Devíamos ter vindo mais vezes... mas daqui por diante viremos mais. Essa
pesquisa com os índios ainda vai render muitas viagens... O passeio de hoje,
que maravilha! Primeiro a mata, a sombra das árvores, o som dos pássaros...
depois o rio de águas tão claras, o banho na cachoeira, aquela explosão aquática
na cabeça... e a companhia tão gostosa de Pedro, tudo perfeito!”
Perfeito,
mas cansativo. Silvia volta para o hotel. Quer tomar um banho e se preparar
para o jantar. O jovem Pedro quis ficar mais um pouco.
Pedro
- Sim estou pronto. Eis-me
aqui novamente.
A mesma terra vermelha, a mesma mata cheia de
pássaros, a mesma cidade com ruas de pedras... só que agora, com muito mais
gente, casas e hotéis. Apesar de não haver pessoas nuas com enfeite de penas,
Pedro sabe que o lugar é esse e o momento é agora.
Pedro
caminha pela mata. Tira toda a roupa, não vai mais precisar dela. Aquece seu
corpo nu aos últimos raios de sol e caminha descalço sobre a terra vermelha até
a margem do grande rio.
- Está certo. É aqui
mesmo. – ele está tranquilo.
Pedro pensa
em Silvia pela última vez e se atira n’água. O turbilhão o engole.
***
Tarefa: O personagem principal deve ter pelo menos 500 anos.
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