A LENDA
Silvia
Silvia olha
para o marido deitado ao seu lado. Seu olhar é uma interrogação. Sua mente
também. Como entender o marido? O que se passa na cabeça desse homem? Por que
seu passado é tão misterioso? Por mais que tente, não consegue entender. Aliás,
é difícil até de acreditar.
Pedro
Mesmo adormecido Pedro tenta não sentir pena
de Silvia. De seus inúteis esforços para compreendê-lo. Na verdade, Pedro se
culpa pelas incertezas de Silvia, mas não consegue evitá-las. Suas poucas
lembranças o perseguem.
As memórias
de sua infância, pés descalços no chão de terra vermelha, a mata cheia de
mistérios... naquela época, a vida era o momento. O sol na pele nua, a flechada
certeira na caça para o almoço, as
danças de roda na noite estrelada, o frescor das águas dos pequenos rios e o
temor das águas dos grandes rios estão sempre presentes em sua mente.
Principalmente o temor das águas dos grandes rios, morada da Yara tão bela, tão
amada... Pedro sorri, enquanto dorme.
Silvia
Silvia sabe
que o sorriso vai se apagar e dar lugar a um
doloroso espasmo. Já vira essa cena inúmeras vezes. Ah, como ela queria
entender!
Pedro
Pedro também
queria entender. Mas as lembranças não o ajudam. Por mais que tente, as
memórias de sua infância terminam abruptamente e são seguidas por um vácuo, um
negror, um nada cheio de vento escuro, uivante e devastador. Nesses momentos,
Pedro geme.
Silvia
Silvia não o
acorda. Ela sabe que não consegue. Pedro abre os olhos, se vira na cama e dorme
novamente. Tantas vezes ela tentara, tantas vezes não conseguira.
Pedro
Passada a
ventania, Pedro já era jovem. No mesmo local, mas completamente diferente. As
matas são menores. Ao invés de campos há casas e quintais, ao redor dos
pequenos rios há plantações e ao invés da pele nua ao sol, roupas muitas
roupas. Todas as pessoas cobertas de roupas passeando por ruas pavimentadas com
pedras, tudo tão diferente do povo nu enfeitado de penas dançando no chão de
terra vermelha.
A terra
vermelha permanece, assim como os grandes rios. Pedro força a lembrança, mas as
imagens vão desaparecendo sumindo, se esvaindo num redemoinho cheio de sons,
luzes, fatos, memórias, tudo girando numa ventania, num turbilhão poderoso,
onde Pedro se perde mais uma vez.
Silvia
Ela
continua olhando o marido. Ele geme, mas ela sabe que logo vai parar. Foi
sempre assim. Desde que se se conheceram. Ele era tão bonito! Moreno, corpo
atlético, cabelos e olhos escuros. Ela se apaixonou imediatamente e depois de
tantos anos juntos, ela aprendeu a aceitar suas esquisitices. Até se acostumou com o mistério de seu
passado. Mas o que mais a intriga é a juventude de Pedro. Enquanto ela ganha
quilos, rugas e cabelos brancos, Pedro continua jovem, belo, atlético e fogoso.
Atualmente, parecia seu filho! E seus
pesadelos estão aumentando. Os primeiros eram raros, ela assustava quando via. Queria ajudar, se
preocupava, ia com Pedro às consultas de
médicos, psiquiatras, homeopatas, holísticos, achava que teria tratamento...
tudo em vão. Depois se acostumou. Viu que era assim mesmo e não se assusta mais.
Silvia não
sabe nada sobre o passado de Pedro. Porém não tem motivos para se queixar. Tem
certeza absoluta da fidelidade dele. E ele sempre se mostra tão apaixonado
quanto nos primeiros tempos do casamento. Ela fica triste por não ter filhos,
mas com certeza não foi por falta de empenho. Simplesmente os filhos não vieram.
Pedro não se importava e ela acabou por se conformar. Mas continua tendo
vontade de saber o passado de seu homem.
Pedro
Os pesadelos
estão se tornando mais e mais frequentes. E ele sabe que assim será até que...
Pedro ama Silvia, mais do que amou outras mulheres perdidas na ventania de seu
passado. Fica triste só de pensar em deixá-la. Mas sabe que é preciso. Procura cobri-la
de carinhos e mimos para compensar o seu futuro sofrimento.
Mesmo sem compreender, Pedro sabe que seu tempo está no fim.
Silvia
Ela não
entende. Seu amado, seu companheiro, seu querido marido, tão bonito, tão
carinhoso, à medida que ela fica mais velha e feia, ele fica mais dedicado,
apaixonado e misterioso. E com o sono cada vez mais agitado.
Pedro
- Silvia eu preciso viajar, fui designado para coordenar uma
pesquisa com os índios do Pantanal Você quer vir comigo?
Ele quer que
ela aceite. Deseja desfrutar de sua companhia mais uma vez.
- Que bom! Adoro viajar com você! Quando vamos?
- A equipe vai daqui a quinze dias. Mas eu proponho irmos
uma semana antes pra passear pela região. Uma nova lua de mel, o que você acha?
– ele sorri o seu melhor sorriso.
- Ah, Pedro, que delícia! Claro que eu acho ótimo! Vou fazer as malas já!
Silvia
“Que lindo é
aqui! Devíamos ter vindo mais vezes... mas daqui por diante viremos mais. Essa
pesquisa com os índios ainda vai render muitas viagens... O passeio de hoje,
que maravilha! Primeiro a mata, a sombra das árvores, o som dos pássaros...
depois o rio de águas tão claras, o banho na cachoeira, aquela explosão aquática
na cabeça... e a companhia tão gostosa de Pedro, tudo perfeito!”
Perfeito,
mas cansativo. Silvia volta para o hotel. Quer tomar um banho e se preparar
para o jantar. O jovem Pedro quis ficar mais um pouco.
Pedro
- Sim estou pronto. Eis-me
aqui novamente.
A mesma terra vermelha, a mesma mata cheia de
pássaros, a mesma cidade com ruas de pedras... só que agora, com muito mais
gente, casas e hotéis. Apesar de não haver pessoas nuas com enfeite de penas,
Pedro sabe que o lugar é esse e o momento é agora.
Pedro
caminha pela mata. Tira toda a roupa, não vai mais precisar dela. Aquece seu
corpo nu aos últimos raios de sol e caminha descalço sobre a terra vermelha até
a margem do grande rio.
- Está certo. É aqui
mesmo. – ele está tranquilo.
Pedro pensa
em Silvia pela última vez e se atira n’água. O turbilhão o engole.
***
Tarefa: O personagem principal deve ter pelo menos 500 anos.
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