quarta-feira, 29 de outubro de 2025

 

                                                                               PANICO

                                                                                                                                            

     Engraçado, não consigo me lembrar de quem me indicou esta clínica. Mas, acho que fiz bem em aceitar a indicação.

     Aqui é tudo tão lindo, tão organizado, relaxante, luzes suaves, cores em tons pastéis, tudo perfeito para combater o stress, aliviar as tensões...  As pessoas são todas muito simpáticas, agradáveis, acolhedoras.  E os sorrisos! Parecem grudados nas caras das pessoas! Será que elas nunca param de sorrir? Nunca ficam tristes? Ou sérias? Ou bravas? Ah! De vez em quando, sai um “arranca rabo” e, algumas vezes o “rabo arrancado” é o meu! Mas, não me queixo, é merecido. Eu apronto e pago por isso.

     Pensando bem, este lugar é meio esquisito. Não sei se vou conseguir ficar aqui por muito tempo. Logo que cheguei, achei ótimo, calmo, relaxante, perfeito para renovar as forças. E eu estava mesmo muito precisada. Foi um bálsamo, depois do apagão que tive. Realmente, eu não poderia continuar naquele ritmo alucinado.

     Porém, um lugar assim, onde tudo é certinho, chega a “me dar nos nervos”! Acho que é uma questão de temperamento. Na verdade, não nasci para ser tão calminha desse jeito. Não sei conviver com este tédio.

     Da última vez que me senti assim, fui falar com os chefes. Recebi longas explicações, nas quais só prestei atenção até a metade... depois a minha cabeça não conseguiu mais acompanhar e eu comecei a divagar sonhando com muitas cores vivas...

     De uns tempos pra cá, comecei a ter saudade do agito, desejando ter novamente os hormônios no comando das minhas emoções.  Agora, tenho saudade até dos sofrimentos! Pensando bem, acho que não preciso mais ficar aqui.

     Vou procurar os chefes, dizer que já estou revigorada, pronta para enfrentar o stress, a correria, o trânsito, as sonhadas cores vivas. Tudo de novo! Mal posso esperar! Não preciso aguardar alta médica. Já me sinto curada. Posso sair hoje mesmo. Quero retomar o meu trabalho, na Secretaria Municipal da Habitação.

                                                                    ***

     Centro da Capital de São Paulo, Edifício Martinelli, Secretaria Municipal da Habitação. Preciso falar com o Sr.  Secretário. Passo pela portaria, me identifico e chego a um longo corredor com o piso de mármore quadriculado em preto e branco. À direita, os elevadores. Muitos elevadores. Alguns expressos, vão direto para os gabinetes das autoridades e respectivas assessorias. Outros, vão para os andares pares e os restantes, para os ímpares. A maioria tem filas diante das portas. Os expressos, não.

          Como vou falar com o Secretário, paro na frente de uma porta sem fila. A espera é breve. O elevador está apenas a um andar abaixo. Logo ele chega, a porta se abre e eu entro.

          Vejo uma mulher. Cabeça baixa, ela está concentrada lendo um papel. Um metro e sessenta e tantos, magra. Eu reparo sua roupa: saia justa preta, blusa estampada com cores discretas, blazer. Constato que ela tem bom gosto. Eu vestiria todas essas roupas, com prazer. Olho os sapatos: saltinhos confortáveis, porém elegantes. Eu tenho sapatos assim. Bolsa grande, de couro, dessas que servem para carregar todos os apetrechos femininos e ainda documentos, um guarda-chuva, (daqueles dobráveis) e talvez um lanchinho. Usei muito bolsas assim.

          Mas eu me concentro na mulher. Ela está tão atenta à leitura de um papel, que nem me nota. O que estará escrito nesse papel? Eu permaneço parada a sua frente, enquanto o elevador sobe. Este é dos expressos. Então é uma longa subida, pois o gabinete do Secretário e suas assessorias ficam no vigésimo quarto andar.

          Continuo observando a mulher. Será que, como eu, ela tem alguma pendência a resolver? A pendência deve estar escrita nesse papel. Estou cada vez mais intrigada... ela tem alguma coisa... que me toca profundamente! Fico desejando que ela levante a cabeça, quero ver seu rosto. Vejo seus cabelos. São castanhos e estão arrumados num coque no topo da cabeça. Quando eu era mais moça, eu penteava os cabelos assim. Estamos quase chegando.

          Chegamos. O elevador para, vai abrir a porta. Ela levanta a cabeça. Eu finalmente, vejo sua cara! Meu Deus! É a minha cara! Fico parada, petrificada, de boca aberta, olhando para ela... mas ela nem me vê! Que horror! Eu me sinto ínfima, uma titica transparente, invisível, um nada...

        Ela vai sair do elevador, olha para o corredor, verifica se está no andar certo. Eu permaneço estática, paralisada, em estado de choque. Fico tão abobalhada, que não saio da sua frente. Estou bem no caminho e ele não desvia. Vai esbarrar em mim! Eu finalmente me dou conta de que estou impedindo a sua passagem e tento me mover. Em vão. Fico imóvel. É tudo muito rápido, ela se aproxima e ... me atravessa! Eu sou ínfima transparente, invisível e atravessável!

          Ela tem as minhas roupas, meus sapatos, meu penteado, minha cara... Ela sou eu!

          Pânico!

.                                                                ***

     Pronto. Olha eu aqui de novo! Tive um novo apagão. Nem deu tempo de contar aos meus amigos que eu não preciso mais ficar neste lugar! 

     Agora, tento explicar porque não quero mais ficar aqui, mas não consigo me fazer entender. Toda vez que digo isso, êles sorriem mais ainda e acho que me aplicam alguma injeção com calmantes, porque eu apago de novo e acordo aqui outra vez!

     Ai que saco, o que devo fazer para sair daqui? Já tentei gritar, espernear, falei todos os palavrões que conheço, já tentei explicar calmamente, usando palavras bonitas, tive paciência, não tive paciência... nada deu certo.

     Já sei. Vou fugir. Vou prestar atenção aos horários das atividades e achar uma brecha, ou melhor, achar um momento no qual todos estejam muito ocupados com suas tarefas, seus afazeres e conseguir sair caminhando calmamente, como se eu também fosse para algum lugar, desempenhar alguma tarefa que me tivesse sido atribuida.

     Estou indo. Fui.

                                                             ***

     Secretaria Municipal da Habitação. Edificio Martinelli.

     Eu acabo de sair do elevador. Vou falar com o Sr. Secretário da Habitaçâo. Preciso apresentar a êle o abaixo assinado da porpulação da favela Paraisópolis, contendo propostas de atuaçâo e requerendo a construção de HIS (habitações de interesse social) para resolver definitivamente o problema das famílias moradoras em áreas de risco. São oitenta e sete famílias. Estou esperançosa. Acho que, desta vez, o Secretário irá atender.

     Mas logo agora, na saída do elevador, tive uma sensação estranha. Foi uma espécie de parada cardíaca? Ou uma queda de pressão? Um quase desmaio? Sei lá... parece que fui atingida por alguma coisa invisível que me causou um súbito mal estar. Ainda bem que passou logo. Não quero que nada pertube a minha reuniâo com o Secretário.

     Afinal, pretendo resolver de uma vez por todas esta questão. Fas tanto tempo que trabalho com isso! Foram tantas reuniões, assembléias, com suas respectivas atas, redação de várias propostas, horas e horas tentando compatibilizar as necessidades dos moradores com as disponibilidades financeiras e operacionais do poder público, até chegar a este documento, que eu não suportaria mais uma negação. Seria intolerável decepcionar o povo mais uma vez.

      Preciso atender essa população, nem que seja a última coisa que eu faça na vida!

                                                              ***


 

 

 

 

 

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

 


                                                           FRAULEIN INGRID


          Pego o trem em Berlim. Vou para Basel. São muitas horas de viagem, atravessando o sul da Alemanha, dentro de uma cabine, de onde vejo a paisagem voando pela janela. Estou sozinha na cabine, é bom, porque não falo alemão. Tomara que seja assim durante toda a viagem, mas não é.  Acaba de sentar-se uma senhora na minha frente.

          Setenta anos, pouco mais, pouco menos, cabelos grisalhos, presos num pequeno e bem comportado coque, roupa escura, surrada e limpinha, com gola e punhos enfeitados com rendinhas brancas, sapatos de salto grosso e pernas surpreendentemente belas, cobertas por meias transparentes de nailon cinzento. Olhos azuis desbotados e bondosos. Ar de dignidade. Quando seus olhos encontram os meus, sua boca de lábios fininhos ensaia um pequeno sorriso.

          Nesse instante, a partir o sorriso, ela nasceu.

          Nasceu durante a guerra, numa pequena cidade alemã, dessas que foram destruidas e depois reconstruidas. Foi criança durante a guerra, assustou-se com o barulho das bombas e passou horas escondida num porão, agrarrada às roupas da mãe. Cresceu durante a reconstrução, escondendo-se nos escombros para fugir dos soldados ocupados em roubar tudo o que conseguiam. Depois, já grandinha, com doze anos, trabalhou como ajudante de pedreiro. Nessa época, ela desfazia a barra das saias numa tentativa de esconder as pernas, que já atraíam os olhares de seus companheiros de trabalho. Por causa disso, tornou-se arisca, estava sempre fugindo, sempre se escondendo. Não encarava as pessoas, vivia com medo. Adolesceu assim.

          Cresceu. Aos 18 anos, ela é comprida, magrela, desengonçada, cabelos difíceis, olhos desbotados que mal conseguiam sustentar um olhar, lábios finos, sorrisos raros. Mas suas pernas são belas. E cobiçadas. Depois de um namorico frustrado, durante o qual, com muito custo conseguiu manter-se intocada, ela decide ir embora. Com o coração fechado e os olhos se desfazendo em lágrimas, foi para Berlim.

          O trem passa por muitas cidadezinhas. Ela olha atenta para todas elas. Testa franzida, pensamentos profundos. Está se lembrando da guerra e do pós guerra.

          Eu tenho um sanduiche. Desembrulho e ofereço com o olhar. Ela percebe que eu não falo sua língua, dá uma piscadela azul desbotada e também me oferece um sanduiche. Eu não quero, mas ela insiste, faz com as mãos, um gesto de apertar, enrolar uma massa e bate no peito. Entendo que ela fez o pão. Aceito um pedaço, só para alegrá-la. É delicioso, ela cozinha bem!

          Descubro então que seu primeiro emprego em Berlim, foi de cozinheira num pequeno restaurante de bairro. Suas massas, suas carnes, seus doces foram ficando famosos, contribuindo para aumentar muito a freguesia do restaurante. Neste momento, eu a vejo assustada e defensiva, se esquivando por entre a cozinha e os balcões do restaurante, correndo em direção às mesas e aos fregueses, onde ela sabe que o patrão não vai importuná-la. O patrão é casado com uma mulher brava. Todos os dias a fraulein espera ansiosamente por sua chegada, porque na presença dela, o patrão, não olha para suas pernas e se comporta dignamente, fingindo ser um homem de bem.

          Agora, entra um homem na cabine. Imediatamente, ele olha para as pernas da fraulein. Ela percebe o olhar e faz cara de quem não quer conversa.

         Então, eu a surpreendo pedindo demissão do restaurante, o que resulta numa discussão acalorada, pois o patrão não quer deixar de vender seus quitutes e muito menos desistir de suas pernas... Mas ela consegue. Já tem algumas economias e está decidida a trabalhar num lugar onde suas pernas não sejam tão importantes.

          O passageiro sentado ao nosso lado, desce nesta parada. E em seu lugar, entra uma senhora com duas crianças pequenas. Desta vez, os olhos da fraulein se enchem de ternura e ela, toda prestativa, ajuda a mãe a acomodar a bagagem e a sossegar as crianças.

          Ela cochila na minha frente, sua cabeça encosta na parede da janela e sua face se descontrai um pouco, mas permanece alerta.  Percebo que tem prática de dormir assim. Noites de vigília ao pé de uma cama.

          Imediatamente, eu a vejo sendo contratada. Depois de longa busca, achou o emprego ideal. Uma familia respeitável, marido, esposa, três crianças e uma avó. Casa grande, jardim, quintal cheio de árvores, boas acomodações para empregados. Começa como cozinheira, depois passa a regar as plantas, depois fica encarregada das arrumações e por fim passa a cuidar das crianças e da avó. A fraulein se torna a governanta do lar, responsável inclusive pela frequencia das crianças à escola, pelos deveres escolares, pelas comemorações de aniversários, quando seus doces e bolos fazem muito sucesso, e até pelo horário dos remédios, pelos copos d'agua, ou pelos chazinhos e sopinhas, quando alguem adoecia.

          Olho suas mãos. Elas merecem uma menção especial. São mãos que sovam massas, que fazem bolos, que limpam narizes de crianças, amparam velhinhos, tratam de doentes, mãos que pegam no pesado, lavam e passam roupas finas, alisam lençois branquinhos, regam plantinhas... lindas mãos!

          A mãe e as crianças descem do trem. Ficamos sós novamente. Resolvo me apresentar, escrevo meu nome em um papel e entrgo a ela. Ela sorri, pega a minha caneta e escreve no mesmo papel: Ingrid. Eu sorrio de volta e escrevo Brasil em baixo do meu nome. Ela me olha interrogativamente. Eu pego minha agenda e abro numa página que tem o "mapa mundi". Aponto o Brasil e seus olhos denunciam o entendimento. Em seguida, ela escreve um nome impronunciável, com muitas consoantes e poucas vogais, em baixo do nome dela. Concluo que é a sua cidade, sua terra natal. Ela está com a mão no coração.

          Eu retomo sua vida. Fraulein Ingrid trabalha com essa familia durante muitos anos. A Alemanha se reconstruiu, a avó morreu, as crianças cresceram e os pais ficaram velhos. A casa ficou grande demais, foi vendida e ela se aposentou. Colocou suas poucas coisas numa mala e numa sacola e suas muitas lembranças no coração. Agora, está sentada, toda ansiosa, rumo à sua aldeia natal. Continua virgem, apesar de suas pernas, que ainda são belas.

          De repente, ela me chama, aponta para a janela, toda agitada, olhos brilhando, mãos no coração! Olha para mim, Olha para a janela várias vezes, respiração ofegante, sorriso radiante! Sua mão fria pega a minha mão e aperta! Eu também aperto a mão dela. Seus olhos estão cheios de lágrimas, até deixam de ser desbotados, se tornam brilhantes, as lágrimas escorrem... as dela e as minhas! Ficamos assim, lacrimejantes, de mãos dadas, olhando a aldeia pela janela.

         Vejo casinhas com quintais cheios de árvores e a torre branca de uma igrejinha. O trem apita e começa a andar cada vez mais devagar. Eu tenho um brochinho com a bandeira do Brasil. Entrego a ela e ganho seu melhor sorriso! O trem para. Ela prende o brochinho na gola de rendinhas, me abraça, pega a mala e a sacola e desce do trem. Fico olhando. Estação deserta. Ninguem à sua espera. Ela olha para mim. Dou adeus com a mão e ela também. 

          O trem se afasta e eu continuo olhando. Ela fica parada na estação vazia. Olha em volta, acena para mim uma última vez. Depois se vira e sai andando firme, com suas belas pernas. 

          Não olha para trás.

                                                                        ***

     









segunda-feira, 7 de outubro de 2024

 


                                                     O que é, o que é?


          Uma bolinha de vidro bem fininho. Bem redondinha, com vidro transparente. Cabe na palma da mão de uma pessoa de tamanho médio. Essa pessoa pode também olhar através dela e enxergar o mundo todo distorcido... até que é um pouco divertido. Mas a bolinha não é contínua. De um lado tem uma interrupção: um buraco redondinho. Emvolta desse buraco, o vidro cresce por fora da bolinha e faz uma borda bem simétrica, em forma de pescocinho, oco. E o mais interessante é que essa borda bem simétrica é totalmente recoberta por um material preto, cuja superfície contem sulcos, que à primeira vista parecem ser paralelos à bolinha, mas não são. Os sulcos começam na base da bolinha e vão se distanciando, dando voltas ao redor do pescocinho e são paralelos entre si, formando espirais, que acabam quando chegam à borda superior do pescocinho. E o pescocinho não é aberto. è coberto pelo mesmo material preto, formando uma tampinha bem lacrada. No meio da tampinha, existe uma espécie de botãozinho, também redondinho e feito de metal dourado. 

          Se a pessoa que estiver segurando a bolinha olhar novamente através do vidro translúcido, vai observar que, além do mundo distorcido, que está do lado de fora, ela pode enxergar que dentro da bolinha, existem uns fiozinhos de metal dourado, muito bem arrumadinhos, em forma de uma molinha bem pequenininha, que fica próxima do pescocinho.

          Que objeto é esse, caro leitor? Você é capaz de descobrir?

          Trata-se de um objeto banal, que existe em qualquer edificação urbana. É um objeto muito útil, eu diria, quase indispensável.

          Conseguiu descobrir? Eu não vou dizer.

                                                                             ***

          

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

 


                                                                      BIG BEN


- Quer ver as fotos?

- Oba! Quero sim! Acho tão importante ter um pai que foi pra Londres!

- Então, olha esta.

- O quê que é isso?

- Uma manifestação política.

- Política? Eles estão apanhando!

- Não, Zeca! Eles não apanharam... só foram desmobilizados...

- Hum... não acredito. O policial está armado! Não bateu neles?

- Não. Os policiais londrinos não batem, só assustam os manifestantes.

- E por que andam armados? Eles não atiram?

- Sei lá... acho que não... pelo menos nesse dia, não atiraram...

- E quem são os manifestantes? O quê eles querem?

- Não sei... não falo inglês.

- Pô, pai... de onde eles são, que bandeira é essa?

- Também não sei.

- Você não sabe nada! Peraí, que vou dar um google... a bandeira é da Jordânia. O quê que a Jordânia quer?

- Paz.

- Pai, se liga! Paz o mundo inteiro quer... Eu quero saber por quê eles estavam se manifestando nesse dia!

- Já disse que não sei!

- E por que fotografou, então?

- Achei interessante... voce reparou que não tem nenhuma mulher?

- É mesmo! Os jordanianos devem ser machistas.

          Silêncio por um momento. Ambos examinam a foto.

- Pai!

- Quê?

- Voce reparou que estão todos de jeans?

- É mesmo! E todos estavam com a cara bem séria.

- E por que você não fotografou a cara dêles?

- Porque chegou a polícia montada e êles sairam correndo com a cara virada pro outro lado.

- Só dá pra ver a cara do homem que caiu e é bem feia mesmo... Voce devia ter filmado!

          Outro silêncio.

- Pai... pra quê é que serve esta foto? Você não sbe nada sobre ela!

- É o registro de um momento, filho.

- Ah... que momento chato! Eu preferia que você tivesse fotografado o Big Ben!

                                                                      ***

domingo, 15 de setembro de 2024

 



                                                               A  REALIDADE

          Paixão cega. Vulcão. Um fogo por dentro. uma geleira por fora. Um banho de neve numa fogueira ardente. Uma ferida aberta, que sangra rasgando uma pele brilhante, saudável. 

          O começo foi assim. Arrebatador. Logo que se conheceram, eles se maravilhavam diariamente com a doçura e a quase simultânea e agressividade dos sentimentos.

         Casaram-se. Tudo lindo. A felicidade radiante. Campos de girassois balançando ao vento. Luar rendilhando sombras.  Alegrias, festas, risos, celebrações!

          Depois, o dia a dia, escovar os dentes, a hora do jantar, as  implicâncias da sogra, a toalha molhada na cama, os olhares suspeitos para o amigos... ciume, ódio. Já nem se lembravam das delícias do início. Passavam os dias a enfrentar-se, a medir forças, como se estivessem prontos a competir, preparados para a largada de um páreo numa pista de corrida. 

           Um dia, depois da pior briga, depois de uma contenda acirrada, repleta de golpes animalescos e de palavras cruéis, aconteceu!

           A realidade que nunca tinham percebido, apesar de tão evidente, tão banal, tão explicativa! A realidade gritante, que todos viam exceto eles. Estupefatos, abismados, boquiabertos, todas as palavras silenciadas. Pela primeira vez, se olharam e se viram por inteiro...

           E descobriram que eram um casal de centauros! E se renderam ao inevitável. 

          Daí por diante, passaram o resto de suas vidas se maravilhando e se escoiceando, como tinha de ser.

                                                                    ***


                                                          LIÇÃO DE CASA

          Os centauros são seres mitológicos, com corpos metade humano e metade equino.

          O mito teve origem provável, na região da Tessália, (sul da Macedônia), onde cavaleiros tomavam conta de vacas. As lendas mencionam que os centauros nasceram de uma união proibida entre Íxion e Hera (esposa de Zeus). Há registros de centauros com coportamento sábio e equilibrado,  bem como registros que revelam sua  índole selvagem e radical.

          A mitologia considera que os centauros são seres que representam o instinto animal em junção com a inteligência humana. São uma metáfora das ações dos homens que tanto podem ser delicados e encantadores, como podem ser agressivos e violentos, numa situação de perda de controle.

          Representam a dualidade dos sentimentos, presente em todos os seres humanos.


                                                                      ***

quarta-feira, 19 de junho de 2024

 


                                                                      O MENINO

                    Estou pedalando minha bicicleta nova, na rua Tucuman, em direção ao rio Pinheiros. Eu curto o vento na cara, o ritmo das pernas, o friozinho na barriga cada vez que passo por um buraco no chão de terra. Conheço todos os buracos, sei exatamente quais eu posso atravessar e de quais eu devo desviar. E sempre prefiro andar na parte da rua que não é asfaltada, porque é mais divertida. 

                    Sigo assim, alternando a atenção entre o chão e seus buracos, e as casas e terrenos baldios da rua. Conheço todas as casas e cumprimento alguns de seus moradores. Afinal, são todos vizinhos é natural que se conheçam e se cumprimentem.

                    Chego ao fim da rua. Estou na várzea do rio Pinheiros. Na várzea não dá para andar de bicicleta. Está sempre semi alagada, cheia de lama ou de areia. Eu gosto deste lugar. Gosto de olhar o rio, de ver as curvas que ele faz. Aqui é tudo quieto e sossegado, dá pa ouvir o barulho da água correndo. E de vez em quando, passa o trem que vai pra Santos. Eu adoro ver o trem passar.

                    Acho uma pedra, deixo a bicicleta do lado e me sento. Daqui a pouco o sol vai se por e eu quero ver. Hoje foi um dia lindo e acho que o por do sol vai ser lindo também. Fico quietinha, achando a vida boa.

                    De repente, vindo não sei de onde, aparece um menino. Deve ter a minha idade. Nem feio nem bonito, nem gordo nem magro, nem bem nem mal vestido. Um menino, apenas um menino. Mas com um sorriso malandro. Ele me olha intensamente, parece que está me avaliando, formando uma opinião sobre a minha pessoa. Eu me sinto um pouco constrangida, fico sem jeito, tenho até uma pontinha de medo... mas, penso:

- É só um menino... não vai me fazer mal... mas parece ser bem abusado. - e, para a minha surpresa, ele fala comigo:

- Olá menina! Você está pensando em mim?

 - E por que deveria estar pensando em você? - respondo, bem malcriada, ele é abusado mesmo.

                   Estou ficando irritada com ele. Ele sorri um sorriso matreiro, um  sorriso de quem sabe segredos. E, para aumentar minha irritação, eu percebo que ele  está  adorando  despertar a minha curiosidade. 

- Porque eu sei tudo o que vai acontecer com você e com este lugar. - ele diz isso com cara de quem gosta de cada palavra, como se elas fossem feitas de doce de côco. Quase lambe os beiços!

- Que menino metido! - penso - Ele acha que sabe da minha vida! Minha mãe sempre me diz pra não falar com estranhos, mas... esse menino precisa de uma lição! Vou desafiá-lo.

- Sabe, é? Pois então me diz, me conta tudo! - quero ver ele se atrapalhar com a resposta.

- Voce quer saber o que vai acontecer com você, ou com o lugar?

- Tudo! Comigo e com o lugar! - falo, bem brava.

- Tá legal. Primeiro você. Voce vai crescer, estudar, se formar advogada, vai casar, ter três filhas, vai se separar, morar com sua mãe, não vai enriquecer apesar de trabalhar muito, mas vai viajar pelo mundo. Depois que se aposentar, vai ser escritora.

- Hum... Não! Não vai ser assim! Não quero ter três filhas. Quero um casal. E quero ser rica.

- Não adianta você querer ou não. Você não vai ser rica e vai ter três filhas. Eu tenho certeza.

- Hum... como pode ter certeza? Eu não acredito em nada disso! - que coisa, ele acha que sabe tudo!

                   O menino deu de ombros, sorrindo sempre. Eu continuo cada vez mais brava, sentindo que não consigo intimidá-lo e pergunto:

- E com este lugar, o que vai acontecer? - desta vez, ele vai se enrolar!

- A rua Tucuman vai perder o "n" e ganhar um "ã", vai ser inteira asfaltada. Aqui onde estamos, vai passar uma avenida margeando o rio. E o rio vai ser retificado, não vai mais ter curvas. Nem várzeas.

- E o clube? - não é possivel, ele tem resposta pra tudo!

- O clube vai ficar no mesmo lugar, mas vai ter muito mais construções, mais modalidades de esportes e muito mais sócios. Você não vai conhecer todo mundo, como conhece hoje. Aliás, voce não vai conhecer todo mundo da rua também, porque a rua vai ficar cheia de prédios. Todas as casas vão ser demolidas.

- Hum... eu não acredito em nada disso! Meu pai disse que vai construir um predinho de três andares no quintal da minha casa e que eu e minhas irmãs vamos nos casar e morar lá!

- Não tem a menor importância.

- Como não? O quê não tem importância?  - não suporto a idéia ele de contrariar o desejo do meu pai!

- Você acreditar ou não. As coisas vão acontecer do mesmo jeito.

- E no começo da rua, o que vai acontecer? - pergunto em tom provocativo.

- A rua Iguatemi vai ser destruida deste lado. Vai ser alargada e vai sumir. No lugar vai existir uma avenida, que vai se chamar Faria Lima. 

- Hum... continuo não acreditando! - ele não se rende!

- Mas devia acreditar, porque tudo isso vai acontecer mesmo, quer você queira ou não. - ele diz isso com um ar vitorioso, que me deixa furiosa.

- Como é que você sabe? - é agora que ele se enrola... não vai poder explicar! Mas o menino não se atrapalha...

- Voce quer saber o meu nome?

- Quero!

 - Eu me chamo Futuro!

                  Disse isso e foi embora, pelo mesmo lugar de onde veio.

                                                                             *** 








- E como é que você sabe tudo isso? - acho que agora, ele vai ficar sem resposta.





                     












            

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

 


                                                                           O SABIÁ


                    Zezinho estava feliz. Havia chovido muito e o poço estava cheio até a borda. Agora que

ele sabia que havia um mundo sem água, gostava de ficar na beiradinha, observando. E estava 

um dia tão lindo! Zezinho chamou seus amigos. Brincaram de esconde-esconde, de pegador, caçaram

 bichinhos, divertiram-se a valer. Já estavam quase indo embora, quando a água estremeceu.

 Assustados, todos os peixinhos se encostaram na parede. Mas como eram curiosos, ficaram olhando.


                      Que criatura esquisita! - pensaram. Suas escamas eram esfiapadas! Embaixo dos olhos,

onde deveria estar a boca, estava uma ponta comprida e dura, que quando se abria emitia um som tão

 doce... tão gostoso de ouvir... que tipo de ser é esse?


                      Zezinho observava. Sabia que existiam seres não aquáticos. Mas, seriam amigos? Este,

pelo menos, era belo. Abria suas nadadeiras, nadava um pouco no ar, e depois mergulhava. Aí, saía da

 agua sacudindo-se todo, fazendo uma chuva de gotas. E então, abria aquela coisa pontuda e fazia um

 som maravilhoso!


                        Aos poucos, Zezinho foi perdendo o medo. Aproximou-se devagarzinho. Seus amigos,

 atrás. Ficaram ouvindo admirados. Até que| Zezinho disse:


- Com certeza ele é amigo, porque está cantando para nós. Vamos dançar para ele!


                        E os peixinhos formaram uma roda, colocaram as cabeças para dentro e os rabinhos em

 volta. Eles sabiam que eram bonitos e então, agitaram suas pequenas nadadeiras, para que raios de sol

batessem nelas e fizessem brilhar suas cores, pois assim ficavam ainda mais bonitos.

                        E ficaram nadando em volta, formando desenhos na água.

                        O sabiá, empolgado com tanta beleza, estufou o peitinho e cantou suas mais lindas

 melodias.

                         Nesse momento, uma brisa trouxe umas florzinhas, que caíram na agua...


                                                                            ***