segunda-feira, 9 de dezembro de 2019







                                                                 SANTIAGO!


          Enfim, chegamos!
          A catedral lindíssima, com a fachada toda restaurada, muito mais fotogênica, serve de cenário para todas as "selfies" de todos os peregrinos e de todos os grupos, que ficam extasiados com a visão. A enorme praça, em frente à igreja fica repleta de gente se abraçando, desfraldando bandeiras de muitos países. Muita gente confraternizando! Uma de minhas amigas trouxe uma bandeira do Brasil, que eu segurei nas pontas e com os braços abertos, posei com meu melhor sorriso, para uma foto, com a catedral ao fundo e a bandeira na frente. Beleza!
           Todos riem, choram, rezam, cantam dançam, externam emoções como podem... e se abraçam. É a terceira vez que chego a Santiago depois de um caminho percorrido. E sempre me recordo dessa praça, como o local no mundo onde dei e recebi os melhores abraços!

          Nosso albergue fica perto. Descemos uma escada, depois uma ladeira e chegamos. Nosso quarto fica no quintal. É minúsculo e tem dois beliches e uma cadeira. Difícil de acomodar as coisas,
porém com lençois limpinhos e cheirosos. O banheiro fica longe, mas é grande e razoavelmente confortável. Ficamos bem acomodadas. Minhas amigas vão até Finisterre. Eu já fui lá duas vezes. Em 2001, pela primeira vez e em 2017, quando fiz o Caminho Português. Desta vez, vou ficar em Santiago.
 
          A cidade fervilha! Milhares de lojinhas, com infinitas lembrancinhas...  o que será que São Tiago acha disso?  Tento não me render ao consumismo. Não consigo, me deixo vencer pela tentação de dar presentinhos. Pra mim, não compro nada. Ando pela cidade. No dia em que as amigas foram à Finisterre, eu fui passear de bondinho pela cidade. É grande, bonita e bem resolvida, tem muitos monumentos, museus, parques, tudo muito bem conservado. Converseri com alguns moradores e todos disseram gostar muito de viver ali, mas que no inverno, quando há menos turistas e peregrinos, eles gostam mais.

          A catedral está sendo reformada por dentro. Então as celebrações estão suspensas. É uma pena. A missa dos peregrinos está sendo rezada todos os dias, ao meio dia, na igreja de São Francisco, que fica perto.  Mas sem o botafumeiro.
          É interessante, porque das outras vezes que estive em Santiago, os peregrinos  (eu inclusive) sempre choram emocionados quando o botafumeiro é acionado. Reza a lenda que a função do botafumeiro era disfarçar o cheiro ruim dos peregrinos que chegavam e iam diretamente para a missa. Atualmente, simboliza a limpeza que o peregrino faz na  alma, quando percorre o caminho. E é nessa hora que a choradeira é geral. Realmente, ver aquele enorme objeto fumegante, "voar" por toda a igreja, acionado por oito padres ao som dos cânticos gregorianos, é emocionante. Que bom que eu já vi essa cena algumas vezes.
           Desta vez, eu fui à missa na igreja de São Francisco e agradeci pela jornada ao som dos cânticos, mas sem botafumeiro.

           Em 2001, quando caminhei pela primeira vez, senti muito mais a sensação de misticismo e magia comumente associadas ao caminho. Não havia celulares, não se pagava nada nos albergues e o menu do peregrino era muito mais barato. Não existiam ônibus cheios de "turisgrinos" e só não carregavam seus mochilões as pessoas realmente impossibilitados. Pisávamos no chão, na maior parte do tempo. O caminho nos fazia lembrar da idade média.
            O número de cidades desabitadas, ou que são habitadas só por donos de albergues, de comércio, bares, restaurantes exclusivamente para peregrinos era muito menor. Havia mais roupas nos varais das pequenas cidades. Os moradores vinham conversar com os peregrinos e oferecer água, às vezes uma fruta e pedir que rezássemos por eles em Santiago.
             Agora, esse misticismo, essa magia não são assim tão evidentes. Nem a cordialidade dos moradores. O caminho é mais atlético e turístico. E mais confortável. Mas continua muito interessante.

              Atualmente, os vários caminhos podem ser trilhados no todo ou em parte, a pé ou de bicicleta, por muito mais gente, de todas as idades. Aumentou muito o número de caminhantes da terceira idade, ou com qualquer tipo de dificuldade de locomoção. Isso é ótimo. E todos tem direito à Compostelana. Os caminhos se democratizaram.
             Se alguem, como eu quiser meditar, rezar, sonhar, pensar na vida enquanto caminha, terá muitas oportunidades. Se for atleta e quiser praticar "trekking" medindo tempos e kilômetros, também terá oportunidades. Se quiser faser um tour histórico e arquitetônico, passando por lugares com muitas  belas construções,  monumentos e obras de arte, também será possível. E o caminhante poderá ainda experimentar a excelente gastronomia da Espanha, bebendo os melhores vinhos. Tudo isso enquanto exercita a própria capacidade de resiliência e conhece pessoas de todo o mundo.

            Enfim, vale a pena fazer o(s) Caminho(s) de Santiago!

            Voce já pode dizer eu li na tela da
                                                                Eulina

     

 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019






                     

                                                  OS ÚLTIMOS 100 KILÔMETROS


          Para ganhar a Compostelana (diploma de peregrino do Caminho de Santiago) é preciso percorrer a pé, a cavalo ou de bicicleta os últimos cem kilômetros. E a cidade de Sarria, que fica a aproximadamente cem km, é  a confluência de quase todos os caminhos que vão a Santiago, partindo de diversos pontos da Espanha. Então, a partir daí o caminho se torna muito mais movimentado. Muitos peregrinos que vieram de muitos caminhos se encontram.  E além disso há muitos peregrinos que só vão fazer cem kilômetros mesmo. Os novos albergues e os antigos também, estão sempre lotados. É preciso reservar com antecedência.

          Atualmente existem ônibus que despejam hordas de "turisgrinos" no caminho. É possível reconhecê-los pelas roupas limpinhas e pela mochila pequena, as grandes ficam nos ônibus. Nem todos usam botas, andam de tênis ou até de "Kroc". Quando chegam em algum restaurante, sempre tem uma mesa grande reservada. São olhados com um certo desprezo pelos peregrinos caminhantes. Encontrei vários grupos desses. Muitos coreanos, espanhóis e alguns franceses. Esses grupos não se misturam. Não interagem, ficam só entre êles. Andam parte de ônibus e parte a pé os cem kilômetros e, quando chegam a Santiago, ganham a Compostelana.

            Felizmente, a maioria dos peregrinos caminhantes oriundos do caminho francês tradicional ou de outros pela Espanha é sempre aberta a novos e internacionais relacionamentos. A língua mais falada é o inglês, mas o Google Translator funciona muito. E mímica também. Mímica é o que mais funciona. Conseguimos dar e obter informações de todos os tipos e para peregrinos de todas as nacionalidades, falando uma mistureba de línguas e mímicas. Enfim, vale tudo. Tudo e todos juntos e misturados. É a maior lição que o caminho nos dá. Afinal, apesar de diferentes, somos todos iguais. Essa é a grande contribuição do caminho para a paz mundial.

           Os últimos trechos são superpovoados. Não temos mais a sensação de isolamento, paz e tranquilidade que tínhamos anteriormente. Ás vezes, em trilhas estreitas, formam-se filas de peregrinos. Eu não gosto muito, mas não tem jeito. É assim e pronto. Mas mesmo assim, prevalecem a alegria e a ansiedade de chegar!

           Percebemos também que quanto mais perto de Santiago, mais a população das cidades fica mal humorada com peregrinos. Devem estar de saco cheio. Eu me lembro, em 2001, todos estavam muito agradacidos ao Paulo Coelho que havia praticamente redescoberto o caminho em seu livro "O Diario de um Mago" dando, à época, um grande impulso à economia do turismo na Espanha. Éramos sempre muito bem recebidos. Agora, essa fase acabou e eles estão "de saco na lua" com essa multidão de peregrinos.

          Tem gente que fica triste quando o caminho está acabando. Habituam-se com a rotina de andar. comer dormir e andar de novo. Fizeram amigos, que sentem ter de deixar. Gostaram do silêncio dos campos, montanhas e florestas. Meditaram, energizaram, rezaram, exercitaram a solidão e o auto conhecimento, tudo conforme suas crenças... abandonaram algumas crenças e adquiriram novas. Enfim, se tornaram outras pessoas... sentem saudade do caminho, antecipadamente. Esses começam a andar mais devagar, querem demorar a chegar.

          Outros estão ansiosos por retomar suas vidas normais, reencontrar a familia, amigos, trabalho... Estão cheios de histórias e aventuras para contar. Querem o conforto de suas casas, suas camas, suas rotinas diárias...   é a maioria. Esses passam a andar mais depressa, querem chegar logo. Minhas amigas e eu pertencemos à essa categoria.

          Em comum, todos estão felizes e bem humorados. E além de terem exercitado suas paciências e capacidade de resiliência, setem o orgulho de um dever cumprido, uma etapa vencida.

                                                                            ***

           Voce já pode dizer eu li na tela da
                                                           Eulina



         

         

 

terça-feira, 3 de dezembro de 2019





                                           


                                                           ANCESTRAIS


          A Galicia é quase toda plana. E foi quase toda pavimentada. Não tem grandes subidas e descidas e nem atoleiros. O cheiro de bosta permanece, é o mesmo que senti em 2001. Mas eu gosto. Eu sentia esse cheiro na fazenda do meu tio, onde passei todas as férias escolares. A paisagem é linda. Podemos caminhar tranquilamente, sem precisar prestar atenção no chão.
           Eu caminho olhando as árvores, o gado pastando, as construções de pedra resquícios da civilização celta, ouvindo o canto diferente das aves, e me lembro de Gonçalves Dias: 
            "Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá. As aves que aqui gorgeiam, não gorgeiam como lá."
             A cabeça pode voar à vontade, enquanto ando. Eu adoro isso, sigo feliz nesta terra sem palmeiras.
                                                                       ***

          Tenho encontrado peregrinos que acolhi em Logroño. É muito bom. Eles se lembram de mim, me abraçam apertado. Agora que estamos quase no fim do caminho, todos já se encontraram em algum ponto. Todos se cumprimentam, trocam impressões sobre a caminhada do dia anterior, os planos para o próximo trecho, comentam o último albergue. Consultam mapas, roteiros, Google, GPS.  Sempre que chegam ficam discutindo o percurso. Minhas amigas fazem isso. Eu apenas concordo com tudo. Minha missão é falar pelo celular com os hospitaleiros dos albergues, dos dias seguintes:
          - Jo quiero reservar tres camas bajas para tres senõras de edad!
          Um dia, precisamos telefonar para vários albergues até conseguir a reserva e um peregrino sentado ao nosso lado começou a rir:
           - Há...há...há... tres camas bajas... há... há... há...
          Dias depois, nós nos encontramos com ele novamente em outro albergue e êle nos cumprimentou rindo... - Olá tres camas bajas!

                                                                     ***

          É interessante ver como as pessoas se resolvem, como lavam as roupas, escovam os dentes,  penduram ou inventam meios de pendurar as roupas na hora do banho... ou de empilhar suas coisas ao lado da cama... alguns fazem uma cortininha na cama de baixo do beliche, enroscando um pano qualquer no estrado da cama de cima. Querem privacidade.
          Outros usam o estrado da cama de cima como varal. Vemos cuecas, calcinhas, meias soutiens, tudo sacolejando a cada mexida do ocupante da cama de cima. É engraçado observar um dormitório! Tive muita sorte, pois em vinte dias de caminhada, dorminndo em quartos coletivos, não precisei usar os tampões de ouvido nenhuma vez. Não encontrei roncadores neste caminho.

                                                                        ***

          Dormimos em Palas Del Rey. Simpática cidade onde a maior atração turística é o castelo de Pambre, que fica a vinte kilômetros, no povoado de Ulloa, ao lado do rio Pambre. Aqui cabe uma pequena explicação:
            Meu sobrenome, por parte de pai é Ulhôa Cintra e rezam as lendas da minha familia, que na era dos reis Felipes da Espanha, alguem de Ulloa se casou com alguem de Cintra de Portugal, (que na época se escrevia com "C"), dando origem à familia Ulloa Cintra.
           Quando Napoleão invadiu Portugal, a familia então residente em Lisboa, fugiu para o Brasil, junto com a côrte de Dom João VI. Aqui, os dois "ll" de Ulloa se transformaram em "lh" e Cintra permaneceu com "C" enquanto em Portugal mudou para "S".

                                                                           ***
           Então, pegamos um taxi e fomos visitar o castelo de meus "ancestrais". Todo de pedra! Com uma torre alta, digna da Rapunzel!  Lindo! Cercado de grandes muros, ladeados por um fosso enorme, tudo no melhor estilo da idade média. O portão de entrada traz alo alto o brazão da família e funciona com carretilhas que quando acionadas fazem abaixar a madeira formando uma ponte sobre o fosso.
           O Castelo foi construido por Don Henrique Ulloa, no ponto mais alto de um campo enorme, para servir de fortaleza, contra os ataques dos mouros. A vista do castelo é monumental e a vista do alto da torre é espetacular! Todo restaurado, um luxo! É a mais perfeita construção medieval de toda a Espanha, como explicou o zelador/curador, que já morou no Brasil. Quando eu contei sobre a lenda de minha família, êle se levantou, apontou com o braço a porta de entrada e disse, em bom português:
          - Então, sinta-se em casa! - e eu me sentí importantíssima, visitando o "meu" castelo! 

           Para mim, esse foi o momento mais emocionante do caminho.

                                                                             ***


          Voce já pode dizer eu li na tela da
                                                              Eulina

         

sexta-feira, 22 de novembro de 2019






                                                              ALBERGUES


                    Quando caminhei em 2001, chegávamos em algum vilarejo, ou mesmo em uma cidade e procurávamos o albergue municipal. Não era obrigatório pagar, mas  havia uma caixa para donativos. E sempre havia vagas. É verdade que peguei camas altas do beliche, várias vezes, mas na época eu tinha 18 anos menos... Agora, a maioria dos albergues é paga e temos que telefonar todos os dias para fazer reserva. E às vezes já está tudo lotado. Se telefonamos com dois ou três dias de antecedência, conseguimos reservar camas baixas. Foi o que fizemos.
                   
                     Num dos vilarejos, o albergue tinha longos corredores, com quatro  pequenos quartos de madeira de cada lado. Cada quarto tinha dois beliches encostados nas paredes de madeira, com espaços mínimos entre eles, com pateleiras nos pés das camas, para acomodar as mochilas. era tudo de madeira e tão apertado, que nos sentimos estar dormindo dentro de um armário.

                     Já em outros albergues, era tudo muito bem planejado. Espaço suficiente para as mochilas, luz de cabeceira, prateleira para as coisas, cabides, camas altas com escadinha... com certeza quem planejou esses dormitórios já foi peregrino.

                    Num lugar, fomos muito mal recebidas por uma mulher sem nenhuma educação, que nos olhava feio, resmungava ou gritava conosco. Mas em compensação, subimos por uma escadaria de mármore, ficamos sozinhas num quarto enorme cheio de camas de casal, com banheiro privativo e ... um luxo: banho de banheira!

                   Em outros, o quarto era enorme, com mais de vinte beliches, uma confusão de mochilas, botas, sacolas e outros pertences empilhados  no chão e banheiro muito longe. Num desses, durante a noite, eu não achei o banheiro feminino, fui no dos homens. Pensei com meus botões. Se alguem reclamar, eu digo que sou trans. E fiquei durante o todo o tempo do pipi, pensando em como dizer isso em inglês. Achei essa desculpa tão boa, que usei muitos banheiros de homens daí pra frente. Mas não tive oportunidade de dizer "I am shemale", como me ensinou o Google Translator.

                  Um dia estava chovendo. Estávamos sonhando com um banho quente e uma cama fofinha. Mas nosso quarto ficava no fundo de um quintal. Era pequeno, abafado, mal iluminado, com seis beliches, nenhum cabide... nós nos acomodamos como pudemos e fomos tomar banho. Tivemos de sair na chuva novamente, andar pelo quintal até o banheiro. Dois banheiros enormes e um cartaz dizendo que eram destinados a cadeirantes. Animadas, abrimos as portas. A animação durou pouco. Apenas um dos recintos tinha um chuveiro. O outro tinha uma privada. Considerando o espaço que ocupavam, dava pra ter uns seis chuveiros e umas quatro privadas. Tomamos banho e depois saimos na chuva novamente até o quarto. Grrr...

                   No meio do caminho, entre uma cidade e outra, ficamos num albergue ecológico, onde tínhamos reservado tres camas baixas. Eu cheguei antes. Minhas amigas estavam uns quarenta minutos atrás. Entrei e fiquei horrorizada. Tudo sujo. Da recepção dava pra ver a pilha de louça suja na cozinha. Sala desarrumada, com brinquedos e roupas de crianças espalhadas pelo chão. Paredes de pedra e grandes vigas de madeira. Tudo tão rústico, que parecia agressivo. Teias de aranha nos cantos. Eu me senti dentro de uma caverna. Tinha jantar comunitário. Vegano. Eu não quis participar e disse que minhas amigas provavelmente não quereriam. Só queríamos o vinho. Jantamos pão com salame, numa mesa que estava no quintal. O vinho era bom.  Durante a noite, eu me levanto para o pipi. As camas são colocadas no enorme quarto, de maneira aleatória. Estava um breu. Meu celular, longe na tomada carregando. Eu me levanto e vou para o lado onde que acho que fica o banheiro... Só que não. Dou de cara com outra cama e depois com outra e mais outra... ando pra cá e pra lá, feito barata tonta... ai meu Deus, onde está o banheiro? Tenho que rebolar, o pipi está quase saindo... pânico ME... não, não fique panicada, voce vai encontrar, penso rebolando. Então, ví uma luzinha... uma moça estava acordada olhando o celular...               
                     - Can you please lend me your cell phone, so that I can go to the toilet? - ela responde em espanhol,
                     - Si... aqui esta! - ela acendeu a lanterna. Eu achei o caminho, fiz o pipi e na volta, agradeci muito!
                     - Muchas, muchas gracias! ... E me perdi novamente! Naquele breu, eu não conseguia achar a minha cama. A moça dando muita risada, me disse:
                     -Tu cama es esta! - e apontou.
                     - Não! Minha cama fica longe da sua! - falei português, será que ela entendeu?
                     - Es esta si, estoy segura! - a esssa altura, gargalhavamos as duas!
                      Não a vi no dia seguinte. Mas tenho certeza de que se lembrará de mim para sempre. Afinal não é qualquer um que consegue se perder dentro do quarto a caminho do banheiro...

                     Eu durmo na cama baixa. Em cima um homem pula que nem cabrito. A cama balança e eu não consigo dormir, então ligo o celular, ponho os fones de ouvido e começo a ver o facebook. O cara em cima de mim pula mais ainda. A certa altura, ele desce do beliche chega perto de mim e diz que não consegue dormir porque o meu celular está muito alto! Mas eu estou com os fones! Tenho vontade de responder que eu não consigo dormir porque ele se mexe demais e a cama toda treme...
Mas não digo. Não quero encrenca. Desligo o telefone. Ele sossega na cama. Dormimos ambos.

                      Mas na maioria das vezes, os albergues são bons. Os hospitaleiros são acolhedores, os jantares comunitários são deliciosos e o vinho maravilhoso. Os banheiros são um pouco difíceis... mas depois de decifrar o funcionamento das torneiras, das descargas e dos chuveiros, tomamos bons banhos, sempre revigorantes depois da caminhada.

                       Voce já pode dizer eu li na tela da
                                                                       Eulina
















segunda-feira, 11 de novembro de 2019







                                  ANDAR, COMER, BEBER, DORMIR E ANDAR DE NOVO


                    Eu me assusto com cidades quase desertas. Os poucos habitantes que encontramos são velhinhos. Não vemos crianças nem jovens. Peregrinos, muitos peregrinos. O caminho está muito diferente. Em 2001, quando fiz pela primeira vez, os peregrinos eram poucos e pelo que me lembro, as cidades eram mais habitadas pela população local.
                   Agora, as cidades, na sua maioria são habitadas pelos donos dos albergues e restaurantes. Ainda há alguns mercadinhos locais. Mas não há escolas, as casas estão todas com as janelas fechadas, e apesar de terem os jardins limpos e cuidados, não vemos ninguem. Às vezes, um varal com roupas de adultos.
                   Estou falando das pequenas cidades. Sempre tem uma igrejinha com um lindo campanário. E no alto dos campanário, um ninho de cegonha. Em 2001, havia muito mais ninhos de cegonhas. E mais crianças. As cegonhas de hoje estão desempregadas.

                                                                ***
                   Em Castrojeriz, só existe uma rua. Uma igreja bem grande no começo da rua e cinco igrejas menores situadas entre vários albergues e restaurantes. Quase no fim, um pequeno centro comercial, com um mercadinho de artigos peregrinos, com um casal de vendedores que deviam estar ali desde a idade média. Um boteco, com mesinhas cheias de peregrinos tomando cerveja e uma agência de correios com a seguinte placa: Horário de funcionamento: de segunda a sexta, das 11:00, às 11:15!  Se não fosse o caminho, essa cidade não existia!

                                                                  ***
                 Uma de minhas amigas tem problema nos joelhos e uma bolha com o diâmetro  do tamanho de uma bola de pingue pongue num dos calcanhares. Mal consegue andar. Fizemos um trecho de ônibus, ela descansou e melhorou. Dia seguinte, recomeçamos a caminhar. Ela vai devagar e nós paramos para esperá-la de temos em tempos. Fizemos assim todo o caminho. foi bom, porque não nos cansamos muito. Exceto a bolha e o joelho, não tivemos nenhum problema de saude em todo o caminho. Aliás, não tivemos nenhum problema.

                                                                     ***
                   Vou andando e me lembrando de Logroño. Ouvi este diálogo, no dormitório, quando fui contar quantas camas estavam ocupadas.
                  - Where are you from?
                  - Del pais Basco.
                  - Entonces eres español!
                  - No! Basco!
                  - Español!
                  - BASCO!
                  - OK Basco.
                                                                    ***
                   Agora, que sou peregrina, encontro com os peregrinos que acolhi. Me dão longos abraços.
                  - I was so down, but when I saw you, you smile at me, I became well again! It was so good!
                   E eu nem me lembro dela, muito menos do sorriso que dei, ou do que eu disse que lhe fez tanto bem!
                                                                 
                                                                     ***
                     - What is your name?
                     - Hermann.
                     - With this name... are you German?
                     - Of course! And you?
                     - I am brazilian!
                     - Seven x one!
                     Rimos ambos. Eu respondo:
                      - Herman, from German, all the world learned how to play football with the brazilians!
                      - Yes. It is true. But now, we are better!
                      Sou obrigada a concordar.
                   
                                                                        ***
                      Durante um jantar comunitário, encontrei  outro alemão contando, que esteve num albergue, onde cada peregrino devia cantar uma canção de seu país e ele ficou muito triste, porque os alemães não conheciam nenhuma música da Alemanha...
                      Eu com a cara de pau, que me é peculiar, cantei: lalalará, lalalará, lalala Lichtstein polka, Lichtstein polka...
                      Ele ficou olhando... eu disse: não é uma música alemã? Ele respondeu: sim... mas nós não cantamos...  e seus olhos ficaram tristemente pensativos.

                                                                         ***
                      Os banheiros são um capítulo à parte. Nunca se sabe onte fica o interruptor da luz, nem como se abre a porta, se para a esquerda, para a direita, se é de correr... tinha até porta com duas folhas. A luz normalmente fica no lugar mais escondido do ambiente. A descarga pode ser de apertar, de puxar cordinha, de abaixar alavanquinha, de puxar um botão. Teve um banheiro (numa parada hippie no meio do caminho) que era uma privada colocada em cima de um buraco enorme. As torneiras se abrem para a esquerda, para a direita, são de apertar, ou fotossensíveis, então ficamos fazendo gestos em frente às pias. Ah... e quando as luzes do teto são daquelas com timer, elas insistem em apagar no meio do número dois ou do banho... ou saimos nus/as dançando no meio do aposento, ou terminamos no escuro. Os boxes do chuveiro são minúsculos, e os chuveiros espirram água por todos os lados de tal forma que é comum a gente ficar se mexendo para receber os pingos d'água, esbarrar na torneira e de repente, a água ou pela ou gela.
                      Mas um bom banho depois de andar vinte km... não tem preço!

                                                                          ***
                      Voce já pode dizer eu li na tela da
                                                                     Eulina





               

sexta-feira, 1 de novembro de 2019





                                                      ENFIM, PEREGRINA


                    As minhas sucessoras no trabalho voluntário deveriam ser duas brasileiras,              segundo me informaram. No entanto, na véspera do término do meu período, no fim da
tarde, chegou uma canadense, bem branquinha, com pequenos e assustados olhinhos azuis, gorducha e ofegante. Ela se parecia fisicamente com a fada madrinha da Cinderela de Walt Disney e sofreu para subir as escadas, o que me fez ficar apreensiva quanto à sua capacidade para subir e descer, essas escadas inúmeras vezes, no dia a dia. Contei a ela tudo o que tinha aprendido no meu período e ela anotou tudo num caderninho. Parecia cheia de boa vontade e disse que estava aguardando sua companheira também canadense, no dia seguinte.
                  No dia seguinte, de manhã, após o café, durante o qual meu "chefe" e eu tentamos responder a todas a suas aflitas perguntas, ela disse:
                         - Onde eu devo deixar as louças do café para serem lavadas? - Ai meu Deus, ela não entendeu nada!   
                       - Você deve lavar a  sua louça e dar exemplo aos peregrinos para que cada um lave tudo o que sujou!
                           Tadinha! - Seus olhinhos até cresceram, de tanto que ela arregalou. 
                    Eu me despedi e fui embora com peninha dela. Fui de ônibus me encontrar com as amigas. No caminho até a rodoviária, fui me despedindo de Logronho. 
                          Missão cumprida!
                                                                          ***
                    Desci do ônibus em Burgos e assustei com o toque dos sinos da Catedral ao meio dia. bonito, mas ensurdecedor. Depois tomei um taxi a Hornillos del Camiño, onde iam pernoitar minhas amigas. Cheguei ao albergue, agora como peregrina. Cheguei cedo, consegui uma cama "baja", ou seja, a cama baixa do beliche. Minhas amigas chegaram mais tarde. Uma delas ficou na cama alta. Comemoramos com cerveja antes e com vinho durante a refeição. O menu do peregrino é sempre farto e regado a vinho.
                       "Com pan e viño se hace el camiño!"  É uma das muitas alegrias do caminho!

                                                                          ***
                   Manhã seguinte, mochilão nas costas, comecei a caminhar. A alegria de caminhar no meio da natureza é indescritível!
                      A sensação de liberdade, a cabeça solta! O privilégio de poder olhar as plantas, de ouvir os pássaros, de sentir os cheiros, de comer as frutas colhidas no pé... e de fazer voar os pensamentos! Que coisa boa!
                     Quando passamos por cidades grandes ou pequenos vilarejos é muito bom observar a arquitetura, o traçado das ruas, a maneira de se comportar do povo, suas tradições e sua história, usos e costumes. Percebemos que as pessoas, embora diferentes, são tão iguais...
                  As enormes planícies espanholas, onde o caminho é uma reta sem fim, e de onde podemos ver o horizonte em todas as direções... nos fazem pensar na eternidade! É fácil rezar, falar com Deus! Bendito caminho!
                Quando olho pra trás e vejo o horizonte, penso: - Eu vim de lá! - e olho pra frente, pro outro horizonte e penso: - Eu vou pra lá! - com meus próprios pés, eu me sinto toda poderosa, quase não caibo em mim, minha cabeça cresce, desprende-se do pescoço e vai parar nas núvens... além das núvens, não tem limites... maravilha! Vou repetir: Bendito caminho!

                                                                       ***

                   Você já pode dizer eu li na tela da 
                                                                     Eulina 











                   

quinta-feira, 31 de outubro de 2019





                                                       DIA RUIM


                     Toda vez que eu faço algo, o meu companheiro (que se julga meu chefe), vem e me diz que não é assim. Mas não me explica como deve ser. Aí, êle faz tudo de novo, bem depressa com cara de chefe. Isso acontece todos os dias depois da janta. Os peregrinos devem lavar a louça. A cozinha é pequena e ele fica em pé no meio dando ordens. Fica tudo atravancado, não se consegue mexer direito nessas horas. Vou pro quarto e fico esperando a hora de arrrumar a mesa para o café do dia seguinte. Volto para a cozinha, quando o movimento diminui e participo da arrumação da mesa. Colocos os pratos de sobremesa, xícaras, copos, talheres, cestas de pães cortado em fatias, geleias, biscoitos... enfim, tudo o que faz parte do café da manhã. A essa altura, ainda tem gente lavando louça e panelas e o "chefe" ainda está lá dando ordens. Ele olha pra mesa e coloca os guardanapos de papel, com cara de "você não faz nada certo". Todo dia é isso. Então, acho que o meu serviço acabou. Volto para o quarto e estou me preparando para dormir, quando o "chefe" bate na porta e grita comigo:
                      - Você não faz nada! Eu tenho que fazer tudo sozinho enquanto  você fica no seu quarto! Venha fazer o café!
                      Eu rezo pra São Tiago - Dai-me paciência! Muita paciência! - Eu vou pra cozinha e tento explicar que havia muita gente, mas ele não me deixa falar. Enfim, num gesto extremo de piti, ele vai dormir e diz:
                      - Então faça o café sozinha!
                       Eu fiz. Odeio as cafeteiras, odeio as garrafas térmicas. Mas fiz. São três cafeteiras. Uma estragou no dia anterior. Só duas funcionam. Então temos que fazer café muitas vezes para encher duas enormes garrafas térmicas.
                       Eu sozinha com duas cafeteiras velhas e insuficientes para encher duas enormes e complicadas garrafas térmicas!
                      -  Sem pânico, ME, fica calma que voce consegue! - Eu fico calma, faço funcionar uma cafeteira e... não consigo abrir a outra! Por mais que eu tente, não consigo! Vou até o dormitório, Tem dois peregrinos acordados.
                       - Can you please open this for me?
                       Os dois tentaram e também não conseguiram. Escrevo um bilhete dizendo que nem eu nem dois únicos pregrinos acordados conseguiram abrir. Deixo a cafeteira no meio da bancada da cozinha, em cima do bilhete. Fiz café muitas vezes na mesma cafeteira até encher as horrorosas garrafas térmicas. Dormi feito pedra.
                                                                    ***
                        Dia seguinte, só digo  bom dia. Não sei se o piti passou. Da minha parte, estou de saco na lua! - Paciência ME! Só faltam quatro dias.
                        Limpo, lavo, passo pano, ponho roupa no varal, recolho a roupa do varal, dobro tudo, ponho tudo no lugar... Ele tenta puxar papo. Sou monossilábica. Não dou chance. Não quero mais briga! Só quatro dias!
                         Mas... não deixo barato. Planejo um texto legal sobre machismo.

                                                                    ***
                          Publiquei o texto sobre machismo no dia 11 de setembro. Ainda estava lá. Uma reflexão sobre a maneira como  me trataram. É impressionante como escrever é bom. Depois que a gente escreve, fica com a alma leve.
                          Agora já estou em Sampa. Já descansei bem, já retomei minhas atividades normais, então vou começar a postar minhas aventuras como peregrina no período de 17 de setembro a 7 de outubro. Como não havia internet nas cidades onde pernoitei, anotei as coisas interessantes num caderno e vou passar a publicá-las a partir de agora.

          Voce já pode dizer eu li na tela da
                                                                   Eulina

                     




quinta-feira, 12 de setembro de 2019





                                                     PEREGRINOS II
           Às oito horas da noite, chega um peregrino falando espanhol, dizendo que está sem dinheiro e que pode pagar dando dois pimentões que recebeu no caminho, ou tocando violáo, ou cozinhando ou afiando as facas. Dou risada com as propostas de pagamento, e respondo que o albergue é gratuito, aceitamos donativos dos que podem e querem pagar. Ele começa a contar a história da vida dele, e disse que nasceu no Brasil! - Pôxa, podemos falar português! - Mas ele é hiperativo, fala sem parar, contou que queria ser padre, mas depois descobriu que não tinha vocação, então veio para a Europa estudar teologia na Alemanha! Sua família é do Rio Grande do Sul e... uma enxurrada de palavras...  Ah, disse que se chama Tiago e por isso está fazendo o caminho! Eu mostrei o salão com colchonetes, os banheiros e o tanque para lavar as roupas. Depois da janta, ele lavou todos os pratos e afiou as facas. Meu companheiro implicou com ele:
- Peregrinos não chegam às oito horas! - Mas implicou porque é brasileiro, fala muito e fala muito alto. Disse que ele não tem educação. Como se os italianos não falassem, e não falassem alto!
              Antes de ir embora, ele me entrevistou, disse que é para um trabalho da faculdade. Eu disse que gosto de receber peregrinos. Mas não disse nada sobre o meu companheiro e nem sobre o padre.
Os pimentões ficaram na cozinha.
                                                                 ...
              Duas peregrinas americanas. É fácil falar com elas. Eu aprendi inglês na União Cultural Brasil Estados Unidos. Eu as entendo e elas me entendem. Meu companheiro as atende. As duas se sentam nas cadeiras que ficam na frente da escrivaninha. Elas aparentam por volta de sessenta anos. Quando se levantam eu vi que uma das cadeiras está bem molhada. Acho que ela não percebeu. Passei um pano úmido com desinfetante.
                                                                      ...
               Temos um negão imenso, com dois metros e dois centímetros, da Costa do Marfim hospedado nos quartos especiais. Ele veio pra cá para dar aulas de francês e fazer doutorado em Ética. Conversamos um pouco. Ele falando francês e um poquito de espanhol e eu falando portunhol e un pétit peu de français. Papo difícil, mas interessante.
                                                                     ...
               Americanos não dizem que são americanos. Dizem eu sou do Texas, eu sou da Geórgia, eu sou de Chicago... Eu pergunto o motivo e eles não sabem responder. Aliás, nem tinham notado isso.
                                                                      ...
                 A campainha toca. Uma moça simpática!
- Do you want to stay here?
- Yes! Jo puedo hablar español!
- De onde eres?
-Argentina. E usted?
- Brasil.
- Entonces somos hermanas! Sorriso aberto, muito legal. Eu retribuo.
- Sim! Somos hermanas!
                           
                   Você já pode dizer eu li na tela da
                                                                      Eulina

quarta-feira, 11 de setembro de 2019





                                               MACHISMO

           Eu não sou feminista, mas acho que devo me colocar contra certo tipo de macho que não presta atenção na maneira como tratam as mulheres.
           Tem gente que se acha. Por um motivo ou outro se colocam na posição de chefe e começam a dar ordens, tratando os outros como seres inferiores. Os outros, no caso, são mulheres.
           Quando estão na frente de seus superiores, ou de alguém a quem querem impressionar, tratam as mulheres muito bem, são simpáticos, educados, sorridentes. Hipócritas. Mas quando estão sem platéia, mostram as garras. Começam a dar ordens. E muitas vezes, ordens contraditórias, impossíveis de serem cumpridas.
            Quando o trabalho dá certo, recebem os elogios e quando ocorre alguma falha, não hesitam em culpar aqueles que considera inferiores. Jamais admitem seus erros e sempre que conseguem, dão a entender que os acertos são de sua exclusiva responsabilidade. As coisas dão certo unicamente porque eles fazem dar certo.
              E sempre que dois desses machistas se encontram, por mais que as mulheres tentem, elas não serão ouvidas. E se acaso forem, suas palavras não serão levadas em consideração, suas boas idéias recusadas, suas reivindicações minimizadas. Mais tarde, essas ideias são postas em prática, com outro nome, com outro jeito. Trocam o seis por meia dúzia e recebem os elogios pelos acertos.
               Mas o pior é que eles nem se dão conta disso! Vai ver, até são sinceros com seus belos discursos sobre colaboração e solidariedade...
               É isso aí.

                Você já pode dizer eu li na tela da
                                                                   Eulina
           

terça-feira, 10 de setembro de 2019


                                                         


                                                                       PEREGRINOS


             Jovenzinha de olhos puxados.
- Where are you from?
- Taiwan - abro o passaporte, debaixo do nome, está escrito República da
China. Eu mostro pra ela. Ela fica muito brava, me mostra a capa. TAIWAN assim, em letras grandes!
                                                                           ...
              Russas demoram um tempão no Google Translator. A frase é:
- Onde podemos lavar nuestros pecados?
               Tenho um ataque de riso. Elas me olham atônitas, recomeçam a digitar furiosamente e me mostram a frase de novo:
- Onde podemos lavar nuestra roupa?
                Eu tento explicar porque tanta graça, mas não consigo. Elas me olham com olhos azuis arregalados. Desisto. Mostro-lhes o salão com os colchonetes.
- Spasibo, spasibo, spasibo! - agradecem, euforicamente! Eu fico rindo. Elas não têm mochilas, carregam tudo em sacolas, estão vestidas com as estampas mais variadas e coloridas, que eu já vi, em tons elétricos de limão, laranja e cenoura. E discutem entre si, parece que brigam... Muito engraçadas!
                                                                   ...
           Alemã tem coceiras. O meu colega examina. São picadas de chinches. Um inseto parecido com uma pulga que se picar muito, dá febre. As instruções são: lavar todas as roupas da mochila, na máquina a 90 graus, impregnar a mochila com inseticida e colocar dentro de um saco de lixo, por pelo menos 12 horas. A alemã não entende muito. Olha espantada:
- Por que não vou dormir na cama? - em inglês, alemão e espanhol, mistura tudo e fica mais espantada ainda quando a colocamos num quarto especial, perto da lavanderia e começamos esvaziar sua mochila. Eu expliquei  muitas vezes em inglês, espanhol e mímica, até que ela entendeu. Quando entendeu começou a chorar... Ai Jesus, o que eu faço? E na mesma linguagem, ela diz:
- Passei o  ano todo juntando dinheiro e comprando essas coisas especiais para a caminhada, agora vai estragar tudo! E ela chorava em alemão...
- No llores... Las cosas no arruinarán ... Don't cry... Tomorrow you are going to walk again...
            Só que não. Ela ainda está aqui e suas coisas ainda estão molhadas. Choveu o dia todo. Mas enfim ela entendeu que não ia estragar nada, recuperou o bom humor e limpou os banheiros pra mim.
                                                                                ...
              Três irmãs polonesas lindinhas de 15, 16 e 17 anos. E um pai todo orgulhoso. Elas resolveram arrumar a cozinha depois da janta. Não deixaram ninguém entrar. Lavaram tudo enquanto cantavam canções que eu imagino serem folclore polonês. Um barato. Deu pra entender o orgulho do pai. Legal a família caminhar junto!
                                                                              ...
                Um casal de franceses no pátio. Ele corta as unhas dos pés dela, faz massagens, trata das bolhas. A certa altur discutem. Ele aponta para um líquido e ela para um creme. Falam, falam e a campainha toca, eu tenho que atender. Quando volto, ela está com ambos os pés cheios de esparadrapos. Achei que devem ter usado o líquido. Se usassem o creme, o esparadrapo não ia grudar.
Agora é ela que está tratando dos pés dele. Bonito ver o casal um tratando do outro! Eles se amam e se cuidam!
                                                                                   ...
               Esse é o melhor de todos os trabalhos. Acolher gente. Cada vez que a campainha toca, é uma nova surpresa, um outro país, outra língua, outras histórias... eu adoro.


             Você já pode dizer eu li na tela da
                                                                eu



domingo, 8 de setembro de 2019

Tutti frutti






                                                                         ALBERGUE

          Este albergue fica na casa paroquial, que é um predinho de cinco andares anexo à igreja de Santiago. A igreja foi construída na idade média justamente para ser abrigo de peregrinos. Mas eu acho que a casa paroquial foi feita depois. São cinco andares com elevador só para quem mora ou trabalha aqui.
          No térreo temos a recepção, o dormitório com dezoito beliches, os banheiros e um grande pátio. Essa é a minha área de limpeza. No primeiro andar, ficam a cozinha, sala de refeições, sala comunitária , salão dormitório para  uns trinta colchonetes  e banheiros. Essa é a área do meu companheiro. No segundo andar, moram algumas carolas. Não há atividade do albergue nesse andar. No terceiro, ficam a casa do padre, e acomodações  para hóspedes seminaristas ou especiais. Tem também a lavanderia. E no quarto, há um casal de carolas, um pequeno almoxarifado onde fica o estoque de comidas  e, por último, um terraço bem ensolarado onde penduramos todas as roupas de cama para secar.
          O problema maior é que a cozinha fica no primeiro andar. Se estamos preparando a comida, temos que descer sempre que toca a campainha. É impossível ficar na cozinha e atender à porta. Então, dividimos assim. Meu companheiro fica com a cozinha e eu com a recepção.  Eu gosto. Cada vez que a campainha toca é uma nova cara, uma nova língua, um novo país, uma nova maneira de caminhar, um novo jeito de perguntar as coisas... Muito legal! É incrível como nesse primeiro momento temos tantas informações! Adoro isso.
             Este albergue tem uma programação: às 19:30 missa e benção dos peregrinos, depois da missa, temos a janta comunitária, com direito  (ou a obrigação) de cantar uma musiquinha chata. O padre serve pessoalmente os peregrinos e dá meio copo de vinho para cada um.  Depois, vamos todos à igreja para uma oração em comum. É reza demais para o meu gosto. Só aí, é que carimbamos a credencial. Eu
          Tenho que assistir tudo isso todos os dias, um saco! Mas para os peregrinos, é uma vez só. E é legal de participar. O cardápio é: macarrão, salada e melancia. No dia seguinte é salada, macarrão e yugurte. No próximo, macarrão, salada e melancia. No seguinte, macarrão, salada e yugurte... e assim se passou uma semana e vai se passar a próxima. Ai... eu quero bife!

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                                                            Eulina




quinta-feira, 5 de setembro de 2019




                                                 RETOMANDO


          Cá estou, depois de dois dias sem internet é um dia com este IPad travado. Descobri que só posso publicar textos curtos. Passando de um determinado tamanho que eu ainda não sei qual é, trava tudo.  Então vamos resumir.

            No primeiro dia, chegou uma senhora, aparentando em torno de cinquenta anos. Ela mancava, gemia, estava toda suada e descomposta. - Estás sola? - perguntei.
- Si, si, si, estoy sola! Estoy toda sola! Nunca estuve tan sola en mi vida!
- Por favor, entre, saca los sapatos e la mochila!
            Chorou para tirar as botas. É comum, quando se tem bolhas. Mas ela não tinha. Veio mancando e gemendo até a recepção. Peço sua identidade e mordo a língua para não rir. Ela se chama Maria Dolores Piedad! Ela deu trabalho. Queria fumar no quarto e tinha uma garrafa com bebida que tomou toda no pátio. No dia seguinte, reclamou dos peregrinos que acordaram cedo. E reclamou mais ainda quando teve que levantar-se e ir embora às oito horas.
           Muitos coreanos com nomes impronunciáveis. Todos simpáticos, eles não falam eles cochicham. Por que será? Ontem chegou um que se chamava Oh eu quase fiz um ponto de exclamação depois do seu nome! Hoje veio uma menina Oh.

          Depois de dois dias sem internet e de um dia com o IPad travado, eu recomeço a contar minhas descobertas.  A ultima postagem, foi pro espaço. Eu a perdi em alguma núvem.

           Muitos italianos. Falantes, espaçosos, engraçados, gosto deles. Bagunceiros, fazem palhaçadas o tempo todo. Eles gostam dos brasileiros também.
- Per que a fato questo?  -

Colocou a credencial no bolso de trás e ela estava toda amassada.
- Perque sono italiano! - Sorriso aberto! Gesticulando muito, encantador!
             Duas russas super simpáticas e sorridentes. Loiríssimas. Não falam inglês, nem espanhol... Nem nada! A comunicação foi feita através do Google tradutor falado! E elas estão viajando assim!
Rimos muito das dificuldades. Mímica realmente é a língua universal. Quando a mímica falha, só o Google na causa.
             Temos alemães, poloneses, croatas, ingleses, franceses, ucranianos... É bem legal observar

como se comportam, como se vestem, como andam, como c
onversam entre si. Adoro essa mistura de gente. Pena que ficam aqui só uma noite e vão embora no dia seguinte. Mas no dia seguinte sempre tem outra leva de gente.
             Temos macarrão e salada todos os dias. Juro que quando sair daqui vou ficar pelo menos quinze dias sem comer macarrão. Quando dividimos as tarefas, eu fiquei com a limpeza e a recepção e o italiano meu companheiro ficou com a cozinha. É bom porque eu não sei preparar comida pra tanta gente.
           
             Às sete e meia temos Missa todos os dias. E todos os dias antes da Missa vem uma carola recrutar peregrinos para fazer orações nas suas línguas de origem durante a Missa. Ela está agora no dormitório fazendo isso.
              O Ipad já está dando sinais de que não quer mais trabalhar.


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                                                                  Eulina





   

domingo, 1 de setembro de 2019



                                           LOGROÑO


           É uma linda cidade, bem parecida com Pamplona. Tem os mesmos horários malucos. Os cafés
funcionam das 7 às 9:30/10h, depois fecham e abrem somentedepois da 14h. Os restaurante abrem às 14h e não sei que horas fecham. Acho que ficam à noite toda abertos, pois todos se queixam do barulho que fazem os bêbados durante a noite. O comércio abre Às 10 e fecha às 20. Tudo isso que eu disse não é uma regra absoluta. Existem muitas exceções, de tal modo que toda vez que queremos alguma coisa, está "cerrado" e quando não precisamos de algo, está "abierto".
           As ruas estreitas são calçadas com paralelepípedos em forma de cubo. Predinhos de no máximo, sete andares, todos lindinhos. Grandes avenidas asfaltadas, com muito pouco trânsito. Tudo bem silencioso, arborizado, cheio de praças. Vou a muitas Igrejas, quase sempre vazias. Mesmo durante as missas, há bem pouca gente. Descubro onde veio parar o ouro dos incas, maias e astecas. Muito ouro, poucos fiéis. Os padres parecem tristes e as carolas também. Aliás, as carolas são todas muito velhinhas, acho que estão em extinção. Já entre os padres, existem alguns jovens.
            Eu gosto de ver como os espanhóis ocupam as ruas! Depois das seis horas, parece uma festa! As famílias saem para passear e para se encontrar. Pelo que observei, eles se encontram de manhã, nos cafés e de noite nas ruas e praças.  E durante a noite, pelas madrugadas, as ruas são ocupDas por grupos de jovens e pelos borrachos. Mas os moradores são os donos da cidade! Todos os dias todas as ruas são laçadas e o lixo é recolhido, dos containers. Não se vê lixo empilhado. Gostaria que os moradores das cidades brasileiras fossem os donos das ruas e praças também.
            Ontem foi sábado, teve um casamento na Igreja. Foi na hora em que havia muitos peregrinos chegando, então não pude assistir, mas a festa foi na rua e eu vi parte. Tinha um grupo de dança, todos fantasiados, que fizeram uma dança cheia de ritmo. Teve tiros de papel picado e nuvens de fumaça colorida. Os noivos, receberam os cumprimentos dos convidados, vestidos com roupas de festa, e depois chegou um fusca branco conversível, todo enfeitado. Os noivos posaram para várias fotos ao lado do fusca. Tive que entrar, nessa hora, mas estava adorando ver a festa. Acho que os noivos foram embora no fusca.
             Ontem, meu primeiro dia, com a chave da porta de entrada, recebi o primeiro casal do dia, vejam! Brasileiros de Campo Grande, terra da família de minha mãe, onde fui passar todas as minhas férias escolares. Foi ótimo explicar tudo em português e sentir que estava acolhendo alguém da minha terra!

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                                                                       Eulina

sábado, 31 de agosto de 2019



                   O ESPÍRITO PEREGRINO

          A primeira vez que fiz o caminho de Santiago foi em 2001. O caminho havia se tornado conhecido recentemente, por causa do livro do Paulo Coelho. Mas ainda não era muito conhecido turisticamente. Ainda havia muito espírito peregrino.
            O espírito peregrino consiste em superar o cansaço, as dores, as bolhas, enfim todos os perrengues e dificuldades que forem encontradas durante dias de caminhadas. É uma alegoria. A vida é cheia de obatáculos e superá-los nos torna melhores. E tal como no caminho, os obstáculos devem ser superados pacientemente um a um, na medida em que surgem. Isso nos faz pessoas melhores e o caminho nos ensina a sermos pessoas melhores. Conhecer outros  peregrinos é a melhor parte. É quando podemos exercitar nossa solidariedade, nossa capacidade de amar ao próximo como a nós mesmos, como Cristo ensinou.
              Lembro-me de passar pôs pequenas cidades e o povo local vir nos oferecer comida, água, sombra para descansar... Os albergues não cobravam nada pelo pouso, havia em alguns, a seguinte placa, em cima de uma cesta destinada a donativos:  Contribua com o que quiseres ou retire o que necessitares. E havia não só dinheiro, mas muitos pertences deixados pelos peregrinos, como xampus, sabonetes, casacos, remédios, roupas em geral, até botas! E funcionava assim. Fazia parte do espírito peregrino.
               Mas o tempo passou e as coisas mudaram. Durante esses anos eu tenho ouvido histórias sobre o caminho, sobre a mudança de pesos para euros, sobre a crise da economia espanhola, etc. Uma das maneiras de que a Espanhan se serviu para vencer a crise econômica, creio que foi o incremento do turismo. Com isso, o caminho ganhou em conforto, as trilhas se tornaram mais bem sinalizadas, o governo se preocupou com a manutenção das trilhas... e os albergues deixaram de ser gratuitos. Quando acabar o meu período de hospitaleira, vou caminhar novamente até Santiago e ver as mudanças nos albergues.
                Mas este em que estou trabalhando, continua como antigamente. É um albergue pertencente à paróquia de Santiago El Real. Um dos mais antigos. A igreja foi construída para ser um abrigo e refúgio de peregrinos, durante a Idade Média. A cidade de Logroño nasceu e cresceu em virtude de estar localizada num cruzamento de várias estradas dentre as quais a principal era o caminho dos peregrinos de Santiago. Continua sendo gratuito, continua sendo acolhedor, oferece cama, comida, e benção aos peregrinos. Para isso trabalham os hospitaleiros. Limpamos tudo, lavamos a roupa de cama e fazemos comida. Trabalhamos muito. E tivemos uma reunião com o pároco que nos falou sobre a importància da acolhida. Estou contente de estar aqui.
                  Hoje é meu primeiro dia. Ganhei a chave da porta. Me senti importante, com ela pendurada no pescoço. Descobri que pela manhã, depois que os peregrinos saem, e depois da faxina, a internet funciona. É a melhor hora para escrever.   Mas, ainda tenho muito assunto atrasado. Vou
escrever sempre que puder e a internet permitir.

                  Você já pode dizer eu li na tela da
                                                                      Eulina

quinta-feira, 29 de agosto de 2019




            PAMPLONA

          Existem  cidades frenéticas. Eu moro em uma delas. Onde tudo acontece ao mesmo tempo e o tempo corre. Outras são letárgicas, onde nada acontece e o tempo não passa. Pamplona tem o tempo certo. Tem os horários malucos da Espanha, mas sem os extremos. Na medida da vida que flui.
          De manhã cedo, por volta de 7h, vários cafés estavam abertos e cheios de gente. Entrei em um deles é entorno tomava café, observei um grupo animado de mulheres e homens na mesa ao lado, mais ou menos umas 10 pessoas, às vezes mais, as vezes menos, conversando, dando risadas lendo e comentando as notícias do dia (havia jornais em cima das mesas) e lendo alto o horóscopo de cada um. Davam muitas risadas. Até que ás 7,30h, todos se levantam desejam bom trabalho e se despedem "hasta mañana". Depois andei pela cidade e vi que em vários cafés ocorria o mesmo. Os amigos se encontam  antes do trabalho, confraternizam no "desayuno" antes do trabalho. Depois os cafés fecham. Às nove está tudo fechado.
            A cidade é silenciosa, o trànsito flui sem lentidão e sem barulho. Poucas pessoas na rua . Tudo fechado. Chego a pensar que é feriado. Poucos carros poucos pedestres, lojas fechadas. Passeio tranquila. Às 11h quero almoçar, já que vou tomar o ônibus para Logroño às 3h. Nenhum restaurante aberto. Tive que me contentar com um "pintxo"! Que pode ser um pequeno sanduíche, uma salada, um petisco... Tudo só abre às 14h. As lojas inclusive. Que coisa!
              Um dia antes, já tinha me espantado com a calmaria na cidade, mas depois, da sete, as ruas se enchem de gente. As famílias saem, lotam as praças, as crianças brincam nas ruas, enquanto os padres/madres, abuelos/abuelas  conversam nos bancos. Eu me sentei em um banco e ao meu lado havia um velhinho lendo "Vida y mureta de La República Española"! E ele nem tinha cara de intelectual!
               Ruas estreitas, vem em minha direção, uma menininha bem pretinha, bem lindinha com cabelos de trancinhas espetadas, eu sorrio pra ela. Ela põe uma grande língua cor de rosa pra mim. Dou risada, e também ponho a língua pra ela. Ela faz careta, eu também faço. Ela vai embora com a cara enfezada. Eu fico rindo.

                Às 8h, sol brilhando. Na Plaza Del Castillo, tem um coreto com uma banda. A banda toca e as famílias dançam. Fazem uma grande roda, deixam suas bolsas, sacolas, casacos empilhados no meio da roda e dançam todos juntos em roda, batem palmas, giram, pulam, levantam uma perna, a outra, todos sabem a coreografia! Muito lindo! Eu olho bem nos olhos das pessoas: estão brilhando!
                  Nessa hora, havia bem poucas pessoas com celular. Os jovens também dançavam. Não tinham tatuagens, piercings, cabelo azul! Eles dançavam na praça!
                  E ontem, não era festa de nada! Um dia comum. Povo feliz.

                   Você  já pode dizer eu li na tela da
                                                                    Eulina
     

terça-feira, 27 de agosto de 2019



     Olá!

     Cheguei hoje em Pamplona. Citade linda! Já compare I passages para Logroño . Estou ansiosa  por começar o meu novo trabalho.
     Estou escrevendo direto no blog, pela primeira vez.
      O voo de São Paulo a Madri foi ótimo. Depois houve um certo stress no aeroporto de Madri, porque o voo da conexão não estava no painel, entáo eu não sabia qual gate era o meu. E havia um totem eletrônico para informar. Quem me conhece sabe o drama. Enfim, nos últimos 15 minutos ante, incluíram o voo no painel. Só nessa hora eu soube o gate. Tive que sair correndo, pelo enorme corredor do aeroporto, cheguei bufando.
     Enfim, deu certo.
     Agora vou sair para jantar o menu do peregrino.
     Você já pode dizer eu li na tela da
                                                          Eulina

quarta-feira, 21 de agosto de 2019






                                                   ERA UMA VEZ UMA CABRITINHA

          Nasceu na América do Sul, no começo da selva amazônica, ao pé da Cordilheira dos Andes.
           Era curiosa. Era obstinada. Resolveu que queria subir os Andes. Queria chegar bem perto do céu. Queria ver o horizonte bem longe.
          Vivia com a família, nos vales úmidos, perto dos rios encachoeirados que vão crescendo e se juntando para formar o Amazonas. Era uma bela paisagem. A cabritinha gostava. Mas continuava querendo subir as montanhas. Ela achava que quando visse o mundo do alto, saberia muito mais coisas e seria muito mais feliz. Na verdade, a cabritinha queria saber mais. Achava que a felicidade estava na sabedoria.
          E foi crescendo. Sempre com a mesma ideia. Sempre se preparando para subir as montanhas.
          Até que um dia,  sentiu-se suficientemente forte. Achou que estava preparada. Despediu-se da família, juntou-se a um bando de outras cabritas que também queriam subir e partiu. Andou, andou, com muitas cabras, bodes cabritos todos muito animados com as aventuras que os esperavam.
          No começo, foi muito divertido. Iam todos contando histórias, rindo, cantando...  Depois de uns dias, começaram a reclamar do cansaço, do desconforto, mas ainda estavam imbuídos do mais alto espírito aventureiro. Na verdade, o grupo se encorajava mutuamente, quando um ameaçava desanimar, os outros o encorajavam.
          E assim foram subindo, subindo. Os caminhos se tornavam mais difíceis, as subidas mais íngremes. O cansaço foi aumentando. E o descontentamento também. Quando o primeiro desistiu, foi uma comoção. Todos ficaram em silêncio. Ficaram se questionando:
- Será que eu consigo? Será que eu quero?
          Mas a nossa cabritinha não desanimava. Era obstinada. Continuava firme no seu propósito. Queria chegar no alto, ver o horizonte de longe. Queria saber mais.
          O tempo foi passando, e mais e mais cabras, bodes e cabritos foram desistindo. Os primeiros justificavam a desistência, davam explicações. Depois, não havia mais necessidade de explicação. Desistiam e pronto. O grupo foi se tornando cada vez mais reduzido.
          O caminho, a cada dia mais difícil, árido, gelado, o ar rarefeito, quase não havia vegetação e o grande número de pedras soltas tornava a jornada mais perigosa. Mas a nossa cabritinha não desistia.
          Às vezes ela ficava apreensiva:
- Será que dou conta? Será que terei forças? Estou tão cansada, tenho tanto frio... e então aparecia um amigo para reanimá-la. Assim como ela também reanimava os amigos que fraquejavam.
          Ela olhava a paisagem cada vez mais do alto. Sua vista alcançava cada vez mais longe... via as cidades, os vilarejos, as estradas, os campos, as outras cabras, tudo cada vez menor, mais distante. O mundo lhe parecia tão belo, tão pacífico, a vida tão simples, bastava caminhar, comer e descansar, para ter acesso a toda aquela beleza, toda aquela paz... Esses momentos valiam todo o esforço. E a cabritinha se sentia recompensada. Sentia que estava aprendendo muito, que estava no caminho certo, que era isso mesmo que ela queria.
          E nesses momentos, sua alegria era tanta, que ela queria repartir com todos os   companheiros! Era alegria demais, não cabia dentro do peito, tinha que ser dividida, partilhada!
          Mas... toda essa felicidade tinha seu preço. Os poucos amigos que restavam, estavam muito ocupados com suas próprias jornadas. Já não andavam mais em grupo... ela os encontrava somente nas paradas de descanso, quando procuravam algum lugar seguro para pernoitar. Estavam sempre tão cansados que pouco se falavam. Ela procurava lembrá-los da animação do começo, das cantorias, das histórias e risadas, mas quando percebia, eles já estavam dormindo e não dava tempo de falar das belezas que tinha encontrado pelo caminho. Quando havia algum problema, ela ainda tinha ajuda. Mas era uma ajuda eficiente e silenciosa. E então, ela compreendeu que só tinha companhia nos momentos difíceis. As alegrias eram solitárias.
          Porém ela não desanimava. Continuava a subida. Estava resolvida a ver o mundo do alto. Queria continuar subindo. Queria continuar aprendendo. E ficava cada vez mais só.
          E é assim até hoje. A nossa cabritinha continua subindo. Continua aprendendo. Já não avista quase ninguém. Quando tem oportunidade de olhar a paisagem, fica deslumbrada. Continua curiosa. Continua persistente. Continua solitária. Mas está também mais forte! Mais certa de que encontrou o seu destino! E - por que não? – cada vez mais feliz!
          E espera que quando chegar ao fim da jornada, encontre outros cabritos curiosos e persistentes para compartilhar o deslumbramento com ela.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019





                                          A DIFÍCIL TAREFA DE EDUCAR II

- Mas eu já te disse milhões de vezes!
- Mãe, esse é um super exagero!
- E você é  hiper desobediente!
- E você é mega chata!
- Eu vou é te dar um blaster castigo!
- Não mãe, aquele não! Eu te imploro!
- Sim! Zilhões de vezes sim! Você vai ficar sem  tablet e  sem celular, por trezentos dias!
- Ah mãe, eu vou ficar doente de solidão!
- Que é isso, menino? Voce tem mais de um milhão de amigos!
- Mas são virtuais! Em carne e osso eu só tenho a Glorinha, que é chata, chatíssima, chatérrima!
- Então vai logo arrumar o seu quarto, senão...
                                                                           ***
- Pronto mãe, está super arrumado.
- Super arrumado... deixa eu ver o guarda roupa!
- Ah mãe, você disse o quarto e não o guarda roupa.
- Hum...  então só duzentos e cinquenta dias!
- Duzentos e cinquenta dias? Só cinquenta menos?
- Então arrume o guarda roupa, que eu diminuo mais!
- Você é trocentas vezes chata!
                                                                             ***




- Pronto mãe, olha o guarda roupa!
- Posso abaixar e olhar debaixo da cama?
- Mãe, já arrumei o quarto e o guarda roupa! Chega não?
- Chega, mas são 150 dias sem o milhão de amigos virtuais.
                                                                                ***
- Pronto mãe, quarto, guarda roupa, e debaixo da cama! Agora chega!
- Vou ver a sapateira.
- Ai... me ferrei de novo!
- Agora são cem dias de solidão virtual...
                                                                                ***
- Pronto mãe, quarto, guarda roupa, debaixo da cama e sapateira!
- Deixa ver... ah, agora sim você zerou, pode continuar com seus zilhões de amigos! Vem cá, me dá um abraço!
                                                                                 ***
          Dias depois, a mãe vai limpar o quarto de hóspedes e descobre que a super, ultra, mega, blaster bagunça está toda empilhada atrás do armário. Ela diz sorrindo:
- Meu Deus, me dê uma super, ultra, mega, blaster paciência!
                                                                                 ***

Tarefa: Texto explorando o exagero.





                                  A DIFÍCIL TAREFA DE EDUCAR

- Mas eu quero do jeito mais fácil!
- Deixa de ser preguiçosa!
- Não vejo utilidade nenhuma em fazer tudo sempre do jeito mais difícil!
- É... de vez em quando, você até pode ter razão...
- Eu sempre tenho razão!
- Aff! Mas às vezes você é insuportável!
- Mas é verdade! Eu sempre tenho razão!
- Você tem é muita pretensão!
- Mas eu falo a verdade!
- Além de tudo, é teimosa.
- Só porque estou falando a verdade?
- Não! É porque você está inflando o seu ego!
- Você é uma chata, sabia?
- E você é metida, sabia?
- Muito chata, você fica o tempo todo me acusando, me botando pra baixo!
- E você fica o tempo todo se auto elogiando, se botando pra cima!
          Silêncio. Troca de olhares. Suspiros.
- Tá bom, vamos voltar ao começo. Tire a casca do tomate antes.
- Por quê? Eu quero bater no liquidificador, com casca e tudo!
- Se você não tirar a casca, o molho vai ficar muito ácido.



- Eu ponho açúcar pra cortar a acidez.
- Não é a mesma coisa!
- Não! É mais gostoso!
- E se você esmagar o tomate sem casca na panela e depois passar na peneira, o molho vai ficar muito mais encorpado, mais...
- Ahn... e eu vou ficar mais irritada, porque vai demorar muito mais!
- Não! Não cozinhe irritada porque a comida vai fazer mal! Você tem que cozinhar com carinho!     
          Silêncio. Olhares furiosos. Mais suspiros.
                                                                     ***
         Apesar da fúria, o molho ficou delicioso. Mãe e filha foram elogiadas pela bela macarronada. Até a nona, tão exigente, gostou.  Ambas agradeceram sorridentes, mas antes trocaram uma piscadela. Cumplices.
                                                                     ***
Tarefa: Diálogo.