terça-feira, 3 de dezembro de 2019





                                           


                                                           ANCESTRAIS


          A Galicia é quase toda plana. E foi quase toda pavimentada. Não tem grandes subidas e descidas e nem atoleiros. O cheiro de bosta permanece, é o mesmo que senti em 2001. Mas eu gosto. Eu sentia esse cheiro na fazenda do meu tio, onde passei todas as férias escolares. A paisagem é linda. Podemos caminhar tranquilamente, sem precisar prestar atenção no chão.
           Eu caminho olhando as árvores, o gado pastando, as construções de pedra resquícios da civilização celta, ouvindo o canto diferente das aves, e me lembro de Gonçalves Dias: 
            "Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá. As aves que aqui gorgeiam, não gorgeiam como lá."
             A cabeça pode voar à vontade, enquanto ando. Eu adoro isso, sigo feliz nesta terra sem palmeiras.
                                                                       ***

          Tenho encontrado peregrinos que acolhi em Logroño. É muito bom. Eles se lembram de mim, me abraçam apertado. Agora que estamos quase no fim do caminho, todos já se encontraram em algum ponto. Todos se cumprimentam, trocam impressões sobre a caminhada do dia anterior, os planos para o próximo trecho, comentam o último albergue. Consultam mapas, roteiros, Google, GPS.  Sempre que chegam ficam discutindo o percurso. Minhas amigas fazem isso. Eu apenas concordo com tudo. Minha missão é falar pelo celular com os hospitaleiros dos albergues, dos dias seguintes:
          - Jo quiero reservar tres camas bajas para tres senõras de edad!
          Um dia, precisamos telefonar para vários albergues até conseguir a reserva e um peregrino sentado ao nosso lado começou a rir:
           - Há...há...há... tres camas bajas... há... há... há...
          Dias depois, nós nos encontramos com ele novamente em outro albergue e êle nos cumprimentou rindo... - Olá tres camas bajas!

                                                                     ***

          É interessante ver como as pessoas se resolvem, como lavam as roupas, escovam os dentes,  penduram ou inventam meios de pendurar as roupas na hora do banho... ou de empilhar suas coisas ao lado da cama... alguns fazem uma cortininha na cama de baixo do beliche, enroscando um pano qualquer no estrado da cama de cima. Querem privacidade.
          Outros usam o estrado da cama de cima como varal. Vemos cuecas, calcinhas, meias soutiens, tudo sacolejando a cada mexida do ocupante da cama de cima. É engraçado observar um dormitório! Tive muita sorte, pois em vinte dias de caminhada, dorminndo em quartos coletivos, não precisei usar os tampões de ouvido nenhuma vez. Não encontrei roncadores neste caminho.

                                                                        ***

          Dormimos em Palas Del Rey. Simpática cidade onde a maior atração turística é o castelo de Pambre, que fica a vinte kilômetros, no povoado de Ulloa, ao lado do rio Pambre. Aqui cabe uma pequena explicação:
            Meu sobrenome, por parte de pai é Ulhôa Cintra e rezam as lendas da minha familia, que na era dos reis Felipes da Espanha, alguem de Ulloa se casou com alguem de Cintra de Portugal, (que na época se escrevia com "C"), dando origem à familia Ulloa Cintra.
           Quando Napoleão invadiu Portugal, a familia então residente em Lisboa, fugiu para o Brasil, junto com a côrte de Dom João VI. Aqui, os dois "ll" de Ulloa se transformaram em "lh" e Cintra permaneceu com "C" enquanto em Portugal mudou para "S".

                                                                           ***
           Então, pegamos um taxi e fomos visitar o castelo de meus "ancestrais". Todo de pedra! Com uma torre alta, digna da Rapunzel!  Lindo! Cercado de grandes muros, ladeados por um fosso enorme, tudo no melhor estilo da idade média. O portão de entrada traz alo alto o brazão da família e funciona com carretilhas que quando acionadas fazem abaixar a madeira formando uma ponte sobre o fosso.
           O Castelo foi construido por Don Henrique Ulloa, no ponto mais alto de um campo enorme, para servir de fortaleza, contra os ataques dos mouros. A vista do castelo é monumental e a vista do alto da torre é espetacular! Todo restaurado, um luxo! É a mais perfeita construção medieval de toda a Espanha, como explicou o zelador/curador, que já morou no Brasil. Quando eu contei sobre a lenda de minha família, êle se levantou, apontou com o braço a porta de entrada e disse, em bom português:
          - Então, sinta-se em casa! - e eu me sentí importantíssima, visitando o "meu" castelo! 

           Para mim, esse foi o momento mais emocionante do caminho.

                                                                             ***


          Voce já pode dizer eu li na tela da
                                                              Eulina

         

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