segunda-feira, 12 de agosto de 2019






                                                           A  LENDA


                                                               Silvia
          Silvia olha para o marido deitado ao seu lado. Seu olhar é uma interrogação. Sua mente também. Como entender o marido? O que se passa na cabeça desse homem? Por que seu passado é tão misterioso? Por mais que tente, não consegue entender. Aliás, é difícil até de acreditar.
                                                              Pedro
          Mesmo adormecido Pedro tenta não sentir pena de Silvia. De seus inúteis esforços para compreendê-lo. Na verdade, Pedro se culpa pelas incertezas de Silvia, mas não consegue evitá-las. Suas poucas lembranças o perseguem.
          As memórias de sua infância, pés descalços no chão de terra vermelha, a mata cheia de mistérios... naquela época, a vida era o momento. O sol na pele nua, a flechada certeira na caça para o almoço,  as danças de roda na noite estrelada, o frescor das águas dos pequenos rios e o temor das águas dos grandes rios estão sempre presentes em sua mente. Principalmente o temor das águas dos grandes rios, morada da Yara tão bela, tão amada... Pedro sorri, enquanto dorme.
                                                               Silvia
          Silvia sabe que o sorriso vai se apagar e dar lugar a um  doloroso espasmo. Já vira essa cena inúmeras vezes. Ah, como ela queria entender!
                                                              Pedro
          Pedro também queria entender. Mas as lembranças não o ajudam. Por mais que tente, as memórias de sua infância terminam abruptamente e são seguidas por um vácuo, um negror, um nada cheio de vento escuro, uivante e devastador. Nesses momentos, Pedro geme.
                                                               Silvia
          Silvia não o acorda. Ela sabe que não consegue. Pedro abre os olhos, se vira na cama e dorme novamente. Tantas vezes ela tentara, tantas vezes não conseguira.
                                                            Pedro
          Passada a ventania, Pedro já era jovem. No mesmo local, mas completamente diferente. As matas são menores. Ao invés de campos há casas e quintais, ao redor dos pequenos rios há plantações e ao invés da pele nua ao sol, roupas muitas roupas. Todas as pessoas cobertas de roupas passeando por ruas pavimentadas com pedras, tudo tão diferente do povo nu enfeitado de penas dançando no chão de terra vermelha.
          A terra vermelha permanece, assim como os grandes rios. Pedro força a lembrança, mas as imagens vão desaparecendo sumindo, se esvaindo num redemoinho cheio de sons, luzes, fatos, memórias, tudo girando numa ventania, num turbilhão poderoso, onde Pedro se perde mais uma vez.
                                                               Silvia
           Ela continua olhando o marido. Ele geme, mas ela sabe que logo vai parar. Foi sempre assim. Desde que se se conheceram. Ele era tão bonito! Moreno, corpo atlético, cabelos e olhos escuros. Ela se apaixonou imediatamente e depois de tantos anos juntos, ela aprendeu a aceitar suas esquisitices.  Até se acostumou com o mistério de seu passado. Mas o que mais a intriga é a juventude de Pedro. Enquanto ela ganha quilos, rugas e cabelos brancos, Pedro continua jovem, belo, atlético e fogoso.  Atualmente, parecia seu filho! E seus pesadelos estão aumentando. Os primeiros eram raros, ela  assustava quando via. Queria ajudar, se preocupava, ia com Pedro às  consultas de médicos, psiquiatras, homeopatas, holísticos, achava que teria tratamento... tudo em vão. Depois se acostumou. Viu que era assim mesmo e não se assusta mais.
          Silvia não sabe nada sobre o passado de Pedro. Porém não tem motivos para se queixar. Tem certeza absoluta da fidelidade dele. E ele sempre se mostra tão apaixonado quanto nos primeiros tempos do casamento. Ela fica triste por não ter filhos, mas com certeza não foi por falta de empenho. Simplesmente os filhos não vieram. Pedro não se importava e ela acabou por se conformar. Mas continua tendo vontade de saber o passado de seu homem.
                                                                Pedro
          Os pesadelos estão se tornando mais e mais frequentes. E ele sabe que assim será até que... Pedro ama Silvia, mais do que amou outras mulheres perdidas na ventania de seu passado. Fica triste só de pensar em deixá-la. Mas sabe que é preciso. Procura cobri-la de carinhos e mimos para compensar o seu futuro sofrimento.
Mesmo sem compreender, Pedro sabe que seu tempo está no fim.
                                                                 Silvia
          Ela não entende. Seu amado, seu companheiro, seu querido marido, tão bonito, tão carinhoso, à medida que ela fica mais velha e feia, ele fica mais dedicado, apaixonado e misterioso. E com o sono cada vez mais agitado.
                                                                 Pedro
- Silvia eu preciso viajar, fui designado para coordenar uma pesquisa com os índios do Pantanal Você quer vir comigo?
          Ele quer que ela aceite. Deseja desfrutar de sua companhia mais uma vez.
- Que bom! Adoro viajar com você! Quando vamos?
- A equipe vai daqui a quinze dias. Mas eu proponho irmos uma semana antes pra passear pela região. Uma nova lua de mel, o que você acha? – ele sorri o seu melhor sorriso.
- Ah, Pedro, que delícia! Claro que eu acho ótimo!   Vou fazer as malas já!
                                                                     Silvia
          “Que lindo é aqui! Devíamos ter vindo mais vezes... mas daqui por diante viremos mais. Essa pesquisa com os índios ainda vai render muitas viagens... O passeio de hoje, que maravilha! Primeiro a mata, a sombra das árvores, o som dos pássaros... depois o rio de águas tão claras, o banho na cachoeira, aquela explosão aquática na cabeça... e a companhia tão gostosa de Pedro, tudo perfeito!”
          Perfeito, mas cansativo. Silvia volta para o hotel. Quer tomar um banho e se preparar para o jantar. O jovem Pedro quis ficar mais um pouco.
                                                                    Pedro
 - Sim estou pronto. Eis-me aqui novamente.
           A mesma terra vermelha, a mesma mata cheia de pássaros, a mesma cidade com ruas de pedras... só que agora, com muito mais gente, casas e hotéis. Apesar de não haver pessoas nuas com enfeite de penas, Pedro sabe que o lugar é esse e o momento é agora.
          Pedro caminha pela mata. Tira toda a roupa, não vai mais precisar dela. Aquece seu corpo nu aos últimos raios de sol e caminha descalço sobre a terra vermelha até a margem do  grande rio.
 - Está certo. É aqui mesmo. – ele está tranquilo.
          Pedro pensa em Silvia pela última vez e se atira n’água. O turbilhão o engole.
                                                                           ***
Tarefa: O personagem principal deve ter pelo menos 500 anos.

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