terça-feira, 13 de agosto de 2019


                                           







                                                                 SALVADOR


                        Salvador, no carnaval. Sonho longamente acalentado. Desde que Caetano disse, pela       primeira vez, que quem não vai atrás do trio elétrico já morreu, Helena queria passar o carnaval em Salvador. Mas num ano tinha trabalho, noutro aquele convite imperdível para Ilhabela, noutro não tinha companhia... fazia tempo que queria ir e não conseguia.
Mas hoje, estava lá. E era perfeito. Estava comemorando o final de um relacionamento longo e doloroso. Nada melhor do que um carnaval na Bahia.
Logo no primeiro dia, os amigos resolveram ficar na piscina do hotel. Helena achava um desperdício!
                      - Depois de tantos planos, consegui dez dias de folga, passagem, estadia, em                                             pleno carnaval da Bahia, e vocês querem ficar na piscina! Vocês já morreram! Eu vou                           atrás do trio elétrico!!!
E foi. No táxi, nem sabia pra onde ir. Não conhecia Salvador. Pensou
               depressa. Lembrou-se do cartão postal.
                        - Para o elevador Lacerda, moço.
                          E deslumbrou-se com a paisagem, com o mar, o sol, e, principalmente,
                com sua  própria excitação.  Entrou na fila para subir o elevador, sentindo-se num livro de                    Jorge Amado. 

Quando saiu do elevador, quase perdeu o fôlego. Seus trinta e dois anos de vida não tinham registro de nenhum momento como esse. O som, os cheiros, as cores, o ritmo, o ritmo, o ritmo... Alucinante! Sentiu a energia do ar, entrando pelos seus poros e correndo em todas as suas veias, a vibração na pele, os tambores no peito... Pôs a mão no peito. Tremia mesmo. As pernas , primeiro bambearam... depois, começaram a acompanhar os tambores, e o movimento foi subindo, subindo, chegou nos joelhos, na cintura - nesse momento, ela se percebeu rebolando – e aquela onda continuou subindo, chegou no peito trêmulo – e então, ela descobriu que quando se movimentava, o tremor diminuía –  aí, começou agitar os braços e mergulhou de vez. Mergulhou de cabeça naquele mar de gente.Foi atrás do trio elétrico. Afinal, estava viva. E como! Não demorou a coordenar os movimentos. Entrou no ritmo. Soltou-se todinha. Cantava, rebolava, pulava, olhava em volta, reproduzia as coreografias dos baianos. Logo, começou a criar algumas coreografias. Era a alegria explodindo em todos os seus cinco sentidos.

                      Depois de algum tempo, não sabe dizer quanto, sentiu uma mão na sua cintura. Olhou. Um jovenzinho, quase adolescente. Moreno escuro? Mulato claro? Não importa. Era bonito. Belos ombros. Rebolava bem. Tinha ritmo.
-     Posso? – seus olhos eram claros, quase amarelos e sorriam.Helena não disse nada. Sorriu também e pôs a mão na cintura dele.
              Ficaram pulando juntos. Sem noção do tempo. Enquanto dançavam e   cantavam, Helena reparou que seus dentes eram lindos e seus braços eram fortes e protetores. Foi muito bom se sentir protegida por aqueles belos ombros e aqueles braços fortes.
-    Vamos parar um pouco? Eu estou com fome.
-      Olhe... a baiana tem acarajé.
             Cada um pagou o seu. Helena adorou o acarajé. Depois, acharam uma tendinha que vendia pinhas. Compraram logo uma dúzia. Saíram comendo e cuspindo as sementes, como metralhadoras. Tomaram cerveja e água de coco. Riram muito. Andavam de mãos dadas e ele ia mostrando as coisas do Carnaval da Bahia, ao som do trio elétrico. Ao pé das igrejas, os baianos rebolando, os casais se enroscando... Deus e o Diabo na terra do sol. E que sol... quando os miolos já estavam quase derretendo, chovia. E todo mundo continuava pulando, cantando e rebolando na chuva. Bendita chuva.

E assim foi o dia.
-           Como você se chama?
-           Dalton. E você?
-           Helena.
-           Helena... é de onde? – a fala cantada, cheia de malemolência...
-           De São Paulo.
-     Eu sou daqui mesmo... moro ali naquela rua ... Vamos ver o sol se pôr na Barra?
      Foi lindo o pôr do sol. Chuparam mangas, ficaram com a boca amarela. O primeiro beijo foi assim. Amarelo. O céu também estava amarelo, da cor da manga, da cor do beijo. O beijo teve a cor do céu.
-           Preciso ir embora. O pessoal no hotel deve...
-           E amanhã?
-           Amanhã eu volto.
-           Ta bom, eu te espero naquela praça, perto da minha casa.
-           Dez horas tá bom?
-           Tá. Olhe um táxi.

       Nos dias seguintes, Helena e Dalton dançaram mais, pularam mais, rebolaram mais, deram muitos beijos amarelos, metralharam muitas sementes de pinha, tomaram mais chuva, sol, cerveja, água de coco. Helena carregava uma sacola comprada no mercado modelo, com uma toalha, apetrechos de praia além do dinheiro e documentos. Assim, estava preparada para qualquer programa, pois ia de biquíni por baixo do vestido. O Carnaval acabou. Os amigos voltaram pra São Paulo, Helena adiou a volta. Queria ficar mais.
         Uma manhã, Helena experimentou um acarajé “quente” e cuspiu tudo, enquanto Dalton ria e comprava outro sem pimenta. Helena se vingou fazendo Dalton acompanhá-la a um museu. Ele foi e ficava olhando pra ela admirado.
-           O que é que você veio fazer aqui?
-           Vim conhecer o museu. Você tem idéia melhor?
Ele respondeu rapidinho. Olhos matreiros. Sorriso idem.
-     Eu tenho...
 Helena também ri.
-           Aonde vamos, então?
-          À  lagoa.
-           Que lagoa?
-           Abaeté.
        Tomaram o ônibus. Demorava. Iam passando por Ondina, Amaralina, Itapuã, muitas praias, muitos coqueiros, muitos beijos. Helena ia sentada perto da janela, sentindo o vento bater no rosto e a mão de Dalton ora no seu ombro, ora na cintura, ora...


A lagoa era linda. Cercada de dunas brancas.
Primeiro, subiram as dunas. Ficaram olhando para a mancha azul da lagoa, lá embaixo. Fazia um sol de rachar a moleira.
-           Vamos descer na correria?
                       Ficaram só com roupa de banho, e desceram correndo e gritando. A cada passo, a areia sôlta escorregava debaixo dos pés e a sensação era de queda, mas aí a perna se firma e é possível dar outro passo. Adrenalina correndo nas veias. Tarzan deve ter sentido isso quando inventou o grito. Nem montanha russa nem looping... é muito mais radical, é igual ao cipó do Tarzan, não dá para frear. Eles correram, correram e caíram dentro da lagoa...
Que delícia! Com aquele calorão, a água era tão boa... Eles se embolaram dentro da água, fizeram uma guerra molhada, dando tapas na superfície da lagoa e quase sufocaram de tanto rir. Depois saíram e começaram a subir de novo. Iam repetir a façanha. Quando chegaram em cima da duna, Dalton teve uma idéia melhor...
-           Que tal aqui e agora?
Helena olhou em volta, Dalton também. Não havia ninguém à vista. Tudo
  silencioso, tudo deserto. Helena sorriu.
-           Aqui e agora. O sol por testemunha.
Estenderam a toalha no chão, beijaram-se muito, abraçaram-se muito.
  Dalton tirou o sutiã de Helena. Ao ver seus peitinhos, exclamou sorrindo:
-           De menina... de menininha... – e beijou-os devagarzinho.

Helena fechou os olhos... O primeiro beijo tinha gosto de manga, o banho na lagoa lembrou as rajadas de sementes de pinha... e agora? A queda livre e louca da descida da duna? ... O acarajé “quente”?  Mas... que coisa boa!  Vem Dalton, vem tocar sua música na minha casa... Entre, que a casa é sua, dance a sua dança, no seu ritmo, assim, devagarzinho... – Helena pensava enquanto também acariciava Dalton – agora mais forte... mais rápido...  

Dalton com todo o vigor de seus vinte e poucos anos, entrou, dançou no seu
  ritmo, tomando muito cuidado para não assustar aquela moça da cidade grande, tão bonita e tão... frágil? ... não, não parecia frágil... inexperiente?... não, não parecia inexperiente... carente? ... é... acho que é isso... ela parece carente... E se sentiu responsável... preciso tratá-la com muito carinho, muito cuidado, para  não machucar... quero que ela seja feliz, comigo.
                
                        E assim foi. Eles começaram bem devagarzinho... bem de mansinho... e pouco a pouco, foram entrando no ritmo alucinante dos trios elétricos até sentiram no peito, o estrondo dos tambores... Terminaram assim. Exaustos. Ofegantes. Felizes. Sentindo o sol arder na pele e ouvindo apenas o silêncio das dunas... até que...
Palmas. Pedidos de bis. Mais um, mais um. Por que parou, parou por que...

                    -   Meu Deus, o que é isso? - Helena e Dalton ergueram o corpo e olharam espantados, na direção das palmas... lá embaixo, ao pé da duna, um grupo de uns vinte meninos, já adolescentes, entre doze e dezoito anos, talvez... rindo, fazendo a maior algazarra,
                   -     Mais um...   mais um...  mais um....

                       Helena e Dalton se levantaram correndo, morrendo de vergonha, morrendo de tanto rir, cataram as coisas, os maiôs caíram na areia, Helena passava a toalha nas pernas, enquanto Dalton sacudia a areia, sempre ouvindo as risadas  e os pedidos de bis dos moleques, se vestiram correndo, sunga, calcinha, sutiã, o sutiã estava difícil de abotoar, Helena enfiou de qualquer jeito as coisas na sacola, acabou de limpar as pernas, se enrolou na toalha e saíram correndo...

                      Dessa vez a descida da duna foi desenfreada mesmo! De perder o fôlego!  A cada passo, uma vertigem... Helena perdeu o equilíbrio e Dalton, na corrida foi ajudá-la, perdeu o equilíbrio também, e os dois se embolaram vertiginosamente até a água. A sacola se abriu e todas as coisas se espalharam pela descida... Até que aos trambolhões, caíram na água e quase se afogaram de tanto rir. Ficaram assim por um tempo. Dentro d’água, rindo e se refrescando, torcendo para que os moleques tivessem desistido de acompanhá-los. Depois de uma meia hora, mais ou menos, e de muitos beijos geladinhos, eles resolveram sair da água.
                     Helena se enrolou na toalha que havia caído perto da margem e os dois subiram a duna, para recolher as coisas. Tudo recolhido, tudo conferido, não faltava nada, os meninos felizmente tinham ido embora, eles resolveram dar a volta na lagoa, até uma barraquinha para tomar uma merecida cervejinha, depois de tantas aventuras...
                    E lá se foram os dois, de mãos dadas, felizes da vida. Chegaram na barraca fresquinha, com cobertura de sapé, sentaram-se nos banquinhos. Helena, finalmente se desenrola da toalha e Dalton cai na gargalhada.
-           Que foi? Quero rir também!
-           Seu sutiã – a voz quase não sai de tanto rir – está do avesso!


     Depois do último beijo, no aeroporto, Dalton disse:
-           Eu nunca vou me esquecer de você.
Ou será que foi Helena que disse isso?

                      Na verdade, não importa. Hoje, muitos carnavais e muitos amores depois, a lembrança daquele carnaval e daquele amor, produz os melhores sorrisos, tanto em Helena, quanto em Dalton.  Ambos cumpriram a promessa.

                                                                   ***

Esse conto não fez parte da oficina literária. Foi escrito muitos anos antes.

                                                




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